Humildificação e desumilde. As palavras.

Osvaldo Pife

Embora eu tenha passado esses últimos quarenta e tantos anos aprendendo a dinâmica da língua portuguesa falada e escrita no Brasil, e por vezes pontuais, em outras nações, a flor do lácio do Bilac é um enigma para mim.

Sei de minha limitação para atingir a graça perversa do Millôr Fernandes, para imitar a palavra seca do Graciliano, para copiar o Quintana, para clonar os haicais do Leminski e para adotar o neologismo fantástico do João Guimarães Rosa. “Do” João (imodéstia, digo).

Ora aqui, ora acolá, tenho ousado proferir palavras, frases e até textos longos, usando a boca e os dedos (sem sensualidade, por favor) como uma aventura desmedida. Existem, inclusive, aqueles que saem de suas paciências e se metem a ler minhas missivas. Às vezes.

Mas.

Mas a minha credulidade frente às palavras tem me deixado disfônico e maltrapilho quando tento ser fiel ao Houaiss ou ao Aurélio. Aqui, faço parênteses ( ). Foram mágicos.

Humildificação e desumilde não as encontrei no Antônio, nem muito menos no Buarque. Talvez elas existam sob os dedos do carioca e do alagoano, mas.

A primeira ouvi de um amigo amante das artes marciais; a segunda, de um aluno, amante de palavras velozes. Sem intervalos, os dois foram fulminantes na pronúncia, como se meus ouvidos estivessem acostumados com tais palavras, e foram naturais perdidamente em suas falas.

Não reagi, nem mesmo mudei a face ao ouvi-las. Mas cortaram a minha arrogância linguística e deram um exemplo da deliciosa orgia vocabular que até então eu não tinha provado. Fui um tolo.

Foi um canto doce em descobrir que todas as palavras existem, independentemente de participarem das páginas dos filólogos.

Confesso minha vergonha.

O rapaz do tatame me ensinou que nas lutas deles a lição é a humildificação, a reverência ao oposto. Sensacional eles não darem a nomenclatura de adversário. Adversário é inimigo, segundo o amigo barbudo. Não é a vida deles. Quem lança o golpe sobre o pescoço de outrem tem que ter respeito, segurança e lição. Sim, lição. Cada investida é para dizer ao oposto que ele não é o que pensa: o todo poderoso, mesmo que porte uma musculatura do deus nórdico Thor. Assim, humildificação é a palavra. Ou você se recolhe à insignificância ou sai da academia. A humildade não é fraqueza para eles, é valor, é saber que pode criar seu próprio caminho de golpes, como quem derruba a própria arrogância. Tanto é que, depois dos suores pingados no tapete de lona, eles se reverenciam, como quem enfrentou um deus.

Aqui em baixinho: acho que vou entrar numa academia de artes marciais. Sei não. Depois a gente fala sobre isso.

O “desumilde” me trouxe uma verdade: eu estou ao meio, sem saber como atravessar a rua. De um lado, uma calçada apinhada de transeuntes, com placas em mãos com os dizeres “és tolo“; do lado além, uma parede a impedir a travessia.

O imberbe falou quando eu tinha dito que muita gente não se importava com as gentes que moravam nas ruas. Acho que foi num daqueles papos que todo professor começa para levantar o ânimo da classe, como o melhor plano da aula. Ele soltou a voz: “Professor, tem muita gente desumilde nesta vida”.

De súbito, me senti bobo. Tudo o que cabia em mim foi pelo ralo. “Como não tinha pensado nesta palavra, antes, em minhas andanças pelo vernáculo!”.

A falta de solidariedade, a ausência de humanidade, a indiferença, o desprezo, a incivilidade, a estupidez. Não dá para imaginar quanto significado saiu de “desumilde“.

Não é cedo ainda, mas tirei meu carro.

Um dia, direi que meu português é uma sombra.

As palavras existem.

***

Poeta, escritor e professor Osvaldo Epifanio, o Pife.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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