Pragmatismo atômico

Miguel Gustavo de Paiva Torres

Com a desintegração territorial, militar e política da extinta União Soviética, no início dos anos 90, os primeiros passos de Moscou pareciam ir ao encontro dos interesses do Ocidente no estabelecimento de uma nova ordem mundial unipolar, sob comando dos Estados Unidos da América.

A emergente Federação Russa estaria fadada, no fim da história falsamente profetizada por Francis Fukuyama, a se juntar ao “ocidente civilizado”, nos mesmos termos da Alemanha e do Japão pós-rendição na segunda guerra mundial: abdicar de sua plena soberania em favor de uma soberania relativa, com a redução do seu arsenal e poder militar, em troca de prosperidade econômica, valores e princípios democráticos. No outro lado do mundo só restaria a China a ser encostada na parede.

O bêbado e mulherengo Boris Yeltsin caminhava trôpego exalando vodka, feliz da vida, com o seu poder, sua fortuna e aliados no saque às riquezas do antigo estado soviético. Mas a KGB — como sempre a KGB —, estava acompanhando a orgia dos novos donos do poder e emplacou no Ministério das Relações Exteriores de Ieltsin o seu antigo chefe, respeitado e sóbrio, Eugenio Primakov.

Nessa época, o jovem Putin, leal até a morte à sua adorada KGB, já andava carregando pastas pelos corredores do Kremlin e fabricando dossiers sobre as extravagâncias, corrupção e bacanais de burocratas e da nova oligarquia bilionária do país, facilitada e incentivada pelo presidente degenerado.

Como a desnuclearização estava na pauta do dia, essa turma do Ieltsin decidiu acalmar o Ocidente entregando rápido, e de bandeja, o poderoso e enorme arsenal nuclear da Ucrânia.

A Ucrânia era uma espécie de ovelha negra da “família” russa, como, por exemplo, o Nordeste no Brasil. Seus habitantes, bravos, aparentados com os russos, mas pobres e considerados inferiores racialmente a estes. De lá são os cossacos, buchas de canhão em todas as guerras, em todos os tempos. Celeiro de judeus.

Primakov chegou forte ao Ministério das Relações Exteriores. Elaborou uma doutrina, conhecida como “Doutrina Primakov” — o nacionalismo pragmático —, contestando qualquer relativização da soberania russa e defendendo sua autonomia econômica, política e militar em um cenário mundial que pretendia multipolar. Usou todo o poder e influência da Rússia para atuar estrategicamente no Oriente Médio, Ásia, África, Europa e América do Sul. Conseguiu implantar as bases de sua doutrina e revigorou a autoestima e confiança do povo e do estado russo.

Com a pilha de dossiers que tinha em mãos, não foi difícil para o jovem Putin convencer Ieltsin a lhe indicar como o candidato do sistema à sua sucessão. Primakov tinha a precedência na sucessão, mas terminou abrindo mão para Putin. Ieltsin teve perdão antecipado por qualquer erro ou crime que porventura houvesse cometido sob os eflúvios alcóolicos e afrodisíacos da maravilhosa, pura e cristalina vodka russa.

Este é o início do fio da meada da atual guerra da Rússia contra a Ucrânia e os seus parceiros norte-americanos e europeus representados na OTAN. A doutrina Primakov é a Bíblia de Putin e de todos os seus fiéis nacionalistas russos. A Rússia acima de tudo e de todos, inclusive de Cirilo, Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, velha colaboradora da KGB nos tempos da União Soviética e nos tempos atuais.

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