O inferno dos outros

Osvaldo Epifanio (Pife)
Imagem principal: Picasso e Dalí por David Vela

Meu estado de espírito sintetiza dois sentimentos, quando o que está posto é o entendimento sobre o que os outros fazem: o primeiro, o receio de não dizer a verdade sobre os atos alheios; o segundo, a insegurança das emoções a respeito do julgamento que faço sobre as escolhas de outrem. Em cada uma dessas circunstâncias, só imagino o pior. Como o ser humano não tem total domínio de suas convicções, sempre falta uma análise perfeita daquilo que nos foi colocado diante dos olhos ou dos ouvidos. Nos dois casos, o que adentra em nossa mente é pura especulação, já que o que foi dito ou presenciado não chega com perfeição até nós. Há sempre uma trajetória que faz um desvio desmedido e, em muitos casos, um profundo e intencional traçado de deformidades. Ainda que as palavras ou as imagens sejam inquestionáveis, por vezes, nem sempre o que reproduzimos delas encontra veracidade ou efeito primoroso, já que somos povoados de sentimentos, e isso é ameaçador, por incrível que pareça. Os sentimentos tolhem a razão e nos levam a mundos estranhos mesmo. Portanto, a mesma realidade tem duas faces: a dos outros e a nossa. São duas verdades para uma mesma realidade, digamos. Isso não acontece por acaso ou por acidente de percurso. Por sermos um amontoado de comiserações, não escapamos facilmente da subjetividade. O que sai dos lábios de outra pessoa nunca será reproduzido sem antes passar pela estrada da compaixão ou pelo pântano da mágoa. As duas são perigosas. Aquela leva à santificação do outro e esta à destruição de uma verdade a olhos vistos.

Quantas vezes não ampliamos a nossa serventia para fazer passar pelo corredor do mundo a única verdade que nos interessa? E quantas vezes não destruímos a realidade que nos incomodou, simplesmente porque não gostamos dela? São indagações retóricas, sei bem disso. No entanto, as respostas nos vêm em abundância, dependendo do lugar de recepção em que nos encontramos. Daí para diante, tudo passa a ser diferente. Desse modo, aquilo que foi dito ou visto chega aos ouvidos e aos olhos movidos severamente pelos interesses pessoais.

Lembro-me de uma frase do Fernando Pessoa: “Nunca amamos ninguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos (…)”.

De fato, o amor e a raiva não existem, a não ser em nós mesmos fabricados, alimentados e depois usados, e quem sabe, descartados sob o tacão de nosso apetite pelo exílio alheio. Os dois são produzidos em nossa mente, incapacitando as palavras de dizerem com fidelidade o que presenciamos. Esse é o mundo sensível de Platão, onde os sentidos são preciosamente cultivados, criando, por certo, um falso desenho da realidade.

Dado esse martírio teórico, o que queremos dizer, portanto? Os erros dos outros ou são recebidos com incomplacência ou com condescendência. Eles, em sua partida, não são necessariamente “erros”, são realidades dessemelhantes daquilo que convencionamos como “acertos”. Para uns, o “erro” dos outros passa a ser o dissabor de uma realidade que não nos convém. Dizer que o outro “errou” é turbinar os sentimentos, considerando não só as leis que regem a ética, a moral e a justiça — e elas são necessárias para regular as relações sociais —, como também o que julgamos ser “erro“.

Não abandono as convenções, pois elas são a consolidação daquilo que uma sociedade promulga como cultura de convivência.  Mesmo assim, a subjetividade dá as cores da realidade (ou da verdade) que sai do interlocutor ou daquela que é construída por alguém bem (ou mal) intencionado e, a saber, historicamente formado.

O outro (o que diz) não o percebe como ”erro”. Daí o intruso momento em que as palavras latejam de emoções. Ter consciência de que se cometeu um “erro” exige um exercício ético imenso, o que muitos não o praticam. Por isso, é inválida a tentativa de imputar o erro a quem não se interessa pela integridade das atitudes. Tal sujeito não tem em sua tração moral a força de deslocamento entre a franqueza e a decência.

De certa forma, o conceito de “erro” é uma atribuição de quem o recebe como tal. Pendem para a benevolência, se a resignação for sua ordem do dia, se os próprios interesses assim o permitirem ou se “a alma for pequena“. Inclinam-se, frequentemente, para a inclemência ao “pecado” alheio como uma denúncia das vergonhas que se alojam nos humanos, não apenas em suas histórias, como também em suas almas.

Quantas palavras são usadas nos dois casos! Desde o afeto até a torpeza, não faltam universos vocabulares para tal. A misericórdia passa longe quando uma realidade nos tira da rota da bem-aventurança. Apenas uns poucos sabem lidar com o inferno dos outros sem se sentirem agraciados pelas bênçãos do divino. No entanto, a multidão de peregrinos em busca de um milagre ou de um dom que os façam ouvir o sermão da montanha com ouvidos santificados é imensa. Busca-se mais o prodígio do que a razão, como aqueles poucos que têm o controle dos sentimentos. E confesso: não há como harmonizar a bem-aventurança com a individualização dos interesses, colocando-os acima das realidades. É isso, são os sentidos, os sentimentos e a subjetividade que maltratam nossa capacidade de enxergar que o inferno dos outros nunca será revogado. Bem-aventurados os que não chamam de seu o vale das sombras… dos outros!

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