Seu Miudinho e a carta do marquês

Osvaldo Pife

A carta que o rei d. João VI de Portugal recebeu do seu amigo Marquês de Borba, naquele fim de tarde morno de 16 de agosto de 1818, causou não só o aplauso do regente, como marcou o fim de tantas desavenças no comércio lusitano. Comerciantes, médicos, artesãos, senhores de terras, vendedores de doce, funcionários públicos, banqueiros e agricultores andavam às turras com Sua Majestade. As mercadorias, as vendas e os serviços tinham um valor, digamos, fictício. Sem saber quanto custava uma cocada, ou um pastel de Belém, era difícil controlar o humor dos portugueses que, naquela fatídica segunda década do séc. 19, já viviam a decadência do seu império, com a proximidade de perder sua principal colônia, o Brasil, piorando mais ainda a autoestima dos dominadores. A correspondência não poderia deixar de ser a grande solução para os males do coração e… do bolso. Nela, Ricardo Raimundo Nogueira, o dito amigo do rei, inaugurou o plano de pesos e medidas para Portugal e, consequentemente, para o Brasil. Ainda dava tempo enviar para as bandas de cá o documento, pois o rapaz Pedro I ainda não tinha tido a ideia de viajar até o Ipiranga para comer aquela feijoada que o deixaria com movimentos intestinais aquosos e pouco consistentes, quase não dando tempo de dar seu único e famoso grito naquele reinado de concupiscência. E isso tudo sem conhecimento do velho pai baixinho, o VI.

A narrativa acima, confesso, usei-a para ilustrar um fato atual que inverte a lógica dessa mesma história. E mais, troca até a origem dos pesos e medidas usados pelos seres humanos pré-históricos, de alguns milhares de anos antes de Cristo, quando sabiam o que fazer no escambo entre os brutamontes, usando braços, pés, palmas da mão, polegares, ânforas e sabe lá o que mais. Mas já mediam. E mandavam brasa, antes mesmo do fogo.

Não é que a intuição voltou! Não é que o valor fictício que provocava tapas, mosquetões e espadas nas ruas enlameadas de Lisboa chegou por aqui, no Tabuleiro do Martins!

Na matemática, na física e nas vergonhas, se um produto pesa 1 quilo, ele tem um quilo. Se mede 3 metros, seu tamanho é… 3 metros. Para 1 quilo ser transformado em 2, é preciso adicionar mais 1; para um tecido Tergal de 3 metros virar 4 metros, é necessário costurar mais 1 metro. Simples, certo? Não. Não pelas terras do João Martins.

A quimera. Vi hoje numa prateleira de supermercado um pacote do sabão em pó Tixan/Ipê, um rosinha, não a filha do radialista, mas a cor. Trazia dois pesos 400g e 500g. De chofre, pensei em se tratar daquelas enroladas “compre 400g e leve 500g”. Não, não era isso. Meus óculos e a máscara se entreolharam e viram uma frase comovente: “ajuste a dose. rende igual”, ao lado dos 400g e 500g. 400g rende igual a 500g!

Como 400g de sabão em pó pode render 500g… de pó? 1kg de açúcar pode render 1,5kg de açúcar? Uma janela de 2m de comprimento pode se transformar em mais 2m de comprimento? Assim, você compra uma de 2m e, com um “ajuste na dose”, ela pode ficar com 4? Como “ajustar” um número para ele ser maior do que é sem adicionar outro? E “ajustar” uma dose, como é isso? No bar do Lula, o Val põe uma dose de aguardente da boa num “enganabêbo” e ainda tira onda “— se achou a dose pouca, coloque água”. E, carinhosamente, traz uma rodela de caju para aplainar o aborrecimento do Firmino.

Só o Seu Miudinho em Fernão-Velho foi o único ser humano a quebrar a lei matemática de medidas. Nem Isaac Newton tinha conseguido.

O papai chegava à Despensa, espécie de barracão da Fábrica Carmem, e pedia: “— Seu Miudinho, me dê um metro de elástico”. “— Peraí, Sebastião”. Saía com seus pezinhos ligeiros, quase desaparecendo debaixo do balcão devido à sua estatura (sabíamos que era ele porque usava um chapéu de tecido marrom, movimentando-se como um aviãozinho de papel, ou um “drone” na linguagem tecnológica), e depois voltava com meio metro do objeto flexível e retrátil. “— Pronto, Sebastião, é dois cruzeiros”. “— Seu Miudinho, pedi 1 metro”. “— Ôxe, tem nada não”. Aí, ele esticava o elástico no próprio balcão, que era pintado de cem centímetros e de mil milímetros, e, então, ia até o metro desejado pelo velho barbeiro. Nem o físico inglês, nem o Marquês de Borba, nem Sua Majestade, nem a Tixan ou quem quer que seja teria, tem ou terá a autoridade de quebrar as leis da natureza. Só o Seu Miudinho e ninguém mais. Está dito, inegociavelmente!

A frase no rótulo do sabão em pó “ajuste a dose. rende igual” de 400g para 500g é patética, trapaceadora, grotesca, indecorosa, fraudulenta, trambiqueira. É de uma patifaria sem igual. Pior. Comete um dos maiores crimes da humanidade: desbancar o Seu Miudinho! Ora bolas! Que o Val não saiba deste aleivo!

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