Um país no papel

Miguel Gustavo de Paiva Torres

O horário normal da embaixada do Brasil em Lisboa previa o encerramento do expediente às 17 horas, mas, com o embaixador José Aparecido de Oliveira os funcionários já haviam se acostumado ao excepcional e aceitavam sair entre 18 e 19 horas.

Aparecido dispensava o motorista e dizia, a cada final de expediente, que iria mais tarde da noite, de táxi. O longo percurso entre a Quinta das Laranjeiras e a sua residência no Restelo, não era muito seguro. Por cortesia eu me oferecia “para ficar mais um pouco” e levá-lo em meu carro para casa.

Com o tempo, terminei me acostumando que esse “mais um pouco” significava permanecer na sala do embaixador até às 22, 23 horas, ou mais. Com a diferença de fuso horário de 4 horas a menos em Brasília, Aparecido aproveitava o horário noturno para fazer o que mais sabia fazer, e gostava. Assim, como seu acompanhante na embaixada vazia, fui testemunha involuntária de momentos marcantes da nossa história política recente.

Amigo do presidente Itamar Franco e do seu núcleo íntimo no poder, José Aparecido era uma voz que se fazia ouvir e seguir no Planalto. Partiu dele, em maio de 1993, a articulação que deslocou Fernando Henrique Cardoso do Ministério das Relações Exteriores para o Ministério da Fazenda, passo decisivo para sua candidatura à presidência da República, com o apoio do Planalto.

Dias antes da efetivação dessa troca de cargo, Aparecido me convocou para um almoço em sua residência com o professor Mangabeira Unger, que já articulava, naquela época, a candidatura do jovem governador do Ceará, Ciro Gomes, à presidência da República. Aparecido não costumava receber sem uma testemunha presente.

No almoço, a três, o professor Mangabeira, com seu característico sotaque da língua inglesa, fez um apaixonado esforço retórico em favor da candidatura de Ciro Gomes. O seu ponto forte para convencimento era o de que São Paulo, como maior força econômica do Brasil, não podia capturar também o poder político, conquistando a Presidência, em detrimento do equilíbrio da Federação.

Em apoio ao que argumentava, apresentou um polpudo calhamaço com as ideias e projetos de um eventual governo do seu apadrinhado, o cearense Ciro Gomes.

Ciro havia feito um reconhecido trabalho como governador do Ceará e ainda não tinha a fama de “coronel”, imagem que angariou com o tempo de permanência da família na política nacional.

Ao final do almoço, Mangabeira saiu contente com sua exposição sobre a necessidade de contrabalançar força econômica e força política em benefício do equilíbrio federativo. Os comentários positivos recebidos à mesa o animavam a pensar que tinha obtido sucesso em sua missão.

Mais tarde, Aparecido entregou-me o calhamaço para leitura e observações. E fez um curto comentário: “São Paulo é São Paulo.”

Dias passados, depois de conversar com Itamar Franco, no horário noturno, telefonou em seguida para FHC e insistiu para que aceitasse trocar o cargo de chanceler pelo de ministro da Fazenda, como condição necessária a um apoio do governo Itamar a sua eventual candidatura à presidência. Em seguida, telefonou para donos e diretores de jornais e televisões do Rio e de São Paulo — amigos seus — informando, em primeira mão, a ida de FHC para a Fazenda.

Abria assim caminho para o senador Fernando Henrique Cardoso chegar ao Palácio do Planalto. Eleito, FHC não deu a Aparecido a chance de se tornar o primeiro Secretário Geral da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa — a CPLP — organismo que ele criou, com muito esforço pessoal e habilidade política e diplomática, durante sua gestão como embaixador em Lisboa.

Mangabeira Unger passou um tempo no Brasil, ocupando alguns cargos “estratégicos” em governos posteriores ao de FHC. Desiludido, entregou os pontos e os cargos, retornando aos seus afazeres na Universidade de Harvard.

***

Nesta eleição de 2022, é a quarta vez que Ciro Gomes apresenta o seu projeto desenvolvimentista brasileiro aos eleitores, revisto e refinado durante suas permanentes candidaturas.

Como comentou um embaixador amigo simpatizante de Ciro, o problema central não é o projeto de governo, que considera muito bom, mas a forma como Ciro se enxerga no espelho e como essa imagem se reflete nos olhares dos brasileiros.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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