A última memória
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Catar piolhos inexistentes e massagear a cabeça da minha mãe; depois fazer cosquinhas nos pés, como aprenderam os filhos dos nossos ancestrais, primatas. O afeto da filha e do filho, instintivo, profundo.
Subir a íngreme ladeira da catedral metropolitana de Maceió, depois do cinema, no mês de julho, com raios e trovões, ensopado até a medula. Chegar em casa, colocar um short e correr para debaixo de uma bica que remete às mais impressionantes cachoeiras e cataratas da minha infância.
Ver, escondido, pelo buraco no teto, pela primeira vez, uma mulher nua, jovem e linda, tomar banho e ensaboar-se; imagem do encanto e da fantasia de príncipes e princesas. Perturbador.
Jogar bolas de gudes, carambolas. Mergulhar no azul do mar, na Praia da Avenida, porto de Maceió. Navios, gregos e troianos, tatuados, sol e sexo na praia.
A vassourinha e o bigode do Jânio Quadros. Pura alegria de meninos, jovens e adultos. Corrupção nunca mais. Varrer sempre (para debaixo do tapete).
Pelé fazendo o gol no radinho de pilha, gritando na calçada, Suécia, 1958. Tricampeão, coreto da Avenida da Paz, carnaval, 1970.
A fascinação noturna refletida no mar, negro; luzes pescando lagostas, vagalumes. Luz negra na boate vestido de branco; o amor apertado assim, nas cores violeta e azul.
O primeiro cigarro. O primeiro whisky. O primeiro emprego e o primeiro carro, fusquinha envenenado sem assoalho. Aprendendo a dirigir. Bandeira a meio-mastro no Banco de Londres em Jaraguá: morre Churchill. Luto de três dias.
Pleno de vida, a morte é abstração. Não é real. Só no cinema. Nas batalhas épicas da antiguidade, filmes de cowboys e de cangaceiros. O Cangaceiro é uma obra prima. Especialmente a abertura. Inenarrável. Inesquecível.
Lembro do último abraço em minha mãe. A morte agora real.
Presente. Passado e Futuro na roda do tempo que roda ao redor do sol, na sombra da lua.