O Jogo

Tonico Miranda

O campo? Careca, de barro, mas sem buracos, o que faria a bola rolar rápida e arrisca, exigindo, muito mais afinidade com a própria. O estádio singular, único, assustador era o Presídio São Leonardo, no Tabuleiro do Martins, vizinho do Campus da UFAL.

Neste estádio, em 1971, no auge da Ditadura, na ausência do estado democrático, tempo de repressão, desesperança e medo, dois times se enfrentaram amistosamente: a seleção da Escola de Engenharia e a seleção do Presídio São Leonardo.

O time da Escola de Engenharia, havia três anos, disputava o campeonato oficial da Segunda Divisão da Federação Alagoana de Futebol, portanto era rodado nesse métier futebolístico; chegando, inclusive, em 1969, a disputar o título do campeonato com o Botafogo de Bebedouro. A Escola perdeu esse jogo, por 2×1, devido às idiossincrasias da bola e da interferência do Sobrenatural de Almeida, vodu do Nelson Rodrigues.

“Quando achei que conhecia todas as respostas, a vida, matreira como ela é, mudou as perguntas”, foi assim que o time da Engenharia se sentiu quando veio o convite pra jogar contra a seleção do Presídio São Leonardo, frise-se, time formado por presos condenados.

Ponderações, receios, medos flutuaram quanto ao insólito convite, porém, pelo contexto e considerando quem organizara esse evento esportivo, logo ficou patente que era irrecusável. O convite fora aceite e fim de papo, vamos jogar.

Os anos 70 começam com a Ditadura aumentando os torniquetes da repressão sob a métrica clássica: derrocada da classe política, da intelectualidade, das franquias democráticas e, fechamento, asfixia dos estudantes secundaristas e universitários. Foi uma razia, em diagonal, no estado de Direito do Brasil.

O parangolé rodou mordaz e ácido sobre tudo e todos; para alguns, o desadoro foi imediato, para outros demorou um pouco, mas chegou e quando veio não trouxe lhanezas. A mídia se portou, como sói acontecer, sórdida, conivente e sempre âncora de todo o enredo; tudo ficou contaminado, olhares e soslaios, quase sempre, não diziam o que queriam dizer, de verdade.

A Ditadura, cada vez mais, pressionava as universidades, a ordem era terra arrasada. Os esbirros, como fala o Rui Castro, se esbaldaram nas iniquidades. A Escola de Engenharia de Alagoas, felizmente, à época, tinha como diretor o professor Everaldo de Oliveira Castro, um cidadão na essência total da dignidade humana, que não deixou nenhum dos seus alunos desprotegidos.

O Jaílson Boia da Rocha, Jiboia, como era conhecido, era militante político, presidente do Diretório Acadêmico da Escola. Era severamente perseguido pelo SNI, órgão federal que coordenava todo o processo repressivo à sociedade civil.

No terço final de 1970, Jailson Boia da Rocha foi condenado a quase um ano de prisão, pena cumprida no presídio São Leonardo, em Maceió. Férias forçadas no Leonardo exigiram do Jiboia destrezas e aprendizados mais que rápidos, afinal era a própria vida na reta, no fio da navalha, peixeira ou bala de 32, ou outras levezas ácidas.

“Eu sendo água, me bebeu; eu sendo capim, me pisou; e me ressoprou, eu sendo cinza”; alerta de percepção de sobrevivência do Riobaldo (sample do Rosa); fundamental é ser sofismado de ladino. Jiboia seguiu, de intuito, a percepção de sobrevivência do Riobaldo; mais que rápido se integrou às regras do presidio. Nem deslize, nem soslaio ou perguntas impróprias.

Num belo dia, na hora de tomar sol, ficou a olhar um racha pra lá de animado. Jiboia olhava e olhava o racha, navegava no imaginário e se via jogando bola, na praia da Avenida, maré seca, trave pequena, 10 de um lado 9 ou 11 do outro. Os fleches de liberdade, quase à mão, lhe encheram de lágrimas esperançosas.

De súbito lhe veio a ideia. Porque não propor um embate entre a seleção do Leonardo contra a esquadra da Escola. Seria apenas um racha com ares oficial. Bom de labial e aguda leveza de espirito, seguiu toda a liturgia hierárquica do presídio, conversou com os capôs e propôs a realização do amistoso “Seleção do Presidio São Leonardo versus Seleção da Escola de Engenharia”. Tempos depois, corridos os banhos, tudo nos conformes e jogo marcado.

Na Escola, quanto mais próximo ficava o dia do jogo, mais a moçada olhava uns para os outros, mas acerto é acerto e palavra dada não se volta atrás. A direção do Presidio até gostou da ideia.

Dia do evento esportivo, a moçada da seleção da Escola de Engenharia, que ficava na Praça Sinimbu, chegou cedo, cada um pegou seu uniforme, camisas listradas azul e branca, calção e meiões brancos, as chuteiras eram de cada um. A Escola foi de Kombi.

Quando o time passou pelo portão do Presídio e teve acesso ao campo de futebol, todos tiveram a impressão que era a simulação do Coliseu de Roma, todo espaço ao redor do campo estava lotado, só faltava entrarem os gladiadores e leões.

Trila o apito do juiz da partida, os capitães se cumprimentam e é jogada a moeda para definir quem escolhe o lado do campo e quem dá a saída do jogo. A Escola deu a saída e a bola rolou.

O central da seleção do Leonardo era enorme e volumoso, apesar do peso sabia jogar, e o lateral era veloz e não perdia viagem. O jogo não era desleal, mas era duro. A Escola perdeu de 4 x 0, com direito a predominância de bola do Leonardo. A torcida se esbaldou, o pessoal da Escola também.

Quando o jogo acabou, pairou uma sensação de serenidade coletiva. Os jogadores e árbitros se cumprimentaram, os presos voltaram para as suas celas, o time da escola abraçou o Jiboia e foi embora. Jiboia voltou para a sua cela. E a vida seguiu adiante. Algum tempo depois, ao cumprir integralmente a pena imposta pela Ditadura, o Jiboia foi libertado.

Janeiro de 2022.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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