Morrer no verão

Miguel Gustavo de Paiva Torres

Morrer pacificamente, depois da última primavera, quando as uvas já estão amadurecendo, pressupondo a nova safra do mesmo antigo vinho que inebriou nossos outonos e invernos. Morrer suavemente, como um corpo que atravessa um céu sem nuvens, levado pelos ventos que correm em setembro.

Morrer, sem saber que morreu, absorto por uma luz reminiscente nos trigais, canaviais, mangueiras, bananeiras, pitangueiras, dando sombra e esperança aos animais que carregam suas presas para alimento das crias, na toca imemorial da sua espécie. Espécie de vidas que florescem no verão. São pássaros cortejando, cânticos e cópulas que assombram flores e abelhas.

Morrer assim, sem pagar pelos pecados seus e dos outros. Morrer com toda a certeza de ter estado por aqui, no momento em que abriu os olhos e respirou. O cheiro das mães. O aconchego do amor. Sobrenatural.

Morrer sem dor, na última viagem do último verão, expandindo a alma em nova dimensão, sem linhas, mapas e desvios. Uma história. Um romance. Um poema: um sonho descobriu Calderón de La Barca, quando acordou à beira mar, sob o voo das gaivotas, música de baleias e golfinhos. Lembrando Caymmi; “é doce morrer no mar”.

Jogar cinzas no mar. Regressar.

Tantos invernos, frios, sombrios, tempestuosos. Outonos de melancolia, violinos e violoncelos. Lágrimas de amores desfeitos e partidas. Perdas.

É primavera. Chegadas, cores, sabores, amores. Nascem, voam e caminham, dando voltas no tempo. Verão. Morrer, na luz do verão.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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