Nair Benedicto e a filha do torturador

Edberto Ticianeli

Manhã de Natal e me deparo no Zap com uma mensagem do amigo Stanley Carvalho perguntando “Viu isso?” e com um link para o canal do Bob Fernandes no Youtube. Não tinha visto e fui ver.

Um choque. Lembrei da mensagem natalina que tinha escrito no dia anterior, exortando o humanismo. E ali estava um depoimento emocionante, carregado de sentimentos nobres e derramando empatias.

Como fotógrafo eternamente aprendiz, conheço de nome a depoente no Doc “Eu Conta-dor de mim”. É a premiada fotógrafa Nair Benedicto, que iniciou sua carreira profissional trabalhando para a Alfa Comunicações, em São Paulo. Foi sócia-fundadora da Agência F4 e depois diretora da N-Imagens. Tem fotografia sua no acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP), no Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA) e no Smithsonian Institute, em Washington, entre outros.

O que eu não sabia era do seu envolvimento com os movimentos oposicionistas à Ditadura Militar e muito menos desse triste episódio envolvendo a filha de um torturador.

Nair Benedicto

Nair e seu companheiro, o pequeno industrial francês, naturalizado, Jacques Emile Frederic Breyton, foram presos em 1º de outubro de 1969 por terem vínculos com a Ação Libertadora Nacional (ALN).

Ela, ainda estudante de Rádio e Televisão na Universidade de São Paulo, tinha amizade com Paulo Tarso Wenceslau e Lauriberto José Reis, que frequentavam sua casa e que passaram a utilizá-la para reuniões. Em sua ficha do Deops/SP consta que Carlos Maringhela chegou a participar de uma delas.

Em seu depoimento para o Doc, que foi roteirizado por ela e por Sônia Fardin, Nair denuncia que foi torturada no pau de arara com choques elétricos, além da tortura psicológica efetuada pelo delegado Fábio Lessa. Após dois meses no Deops/SP, foi transferida para o Presídio Tiradentes (4 de dezembro de 1969), de onde saiu em liberdade no dia 3 de julho de 1970.

Mulheres no sisal, foto de Nair Benedicto

Foi nesse período, em que recebeu visitas de solidariedade, que conheceu Fabíola, “uma jovem muito interessante, escrevia muito bem” e “acabou sendo um personagem muito importante de nossa vida”. A jovem era filha do delegado Fábio Lessa de Souza Camargo, um dos envolvidos em tortura, segundo denúncias de vários presos políticos e da própria Nair. Era um dos delegados de Polícia lotado no Deops/SP entre 1969 e 1971.

Algum tempo depois de ter estabelecida esta amizade, Fabíola foi morar na França em busca de aprimoramento para seguir na carreira de escritora. E foi lá que Nair e Jacques a reencontraram durante uma viagem de passeio.

Nos dias que se seguiram à recepção, Fabíola permanecia no apartamento do casal e pediu para dormir ali, o que despertou a atenção da fotógrafa. “No dormir aqui estava embutida a pergunta que ela queria fazer e que estava quebrando a cabeça dela”.

A filha do delegado de Polícia tinha comprado o livro “Tortura Nunca Mais” e nele encontrado o nome do pai entre as autoridades apontadas como torturadoras. Revelou para Nair que conversara com o pai e que ele negara tudo.

Disse ainda que passara várias noites em claro e que esperava do casal amigo a verdade sobre as denúncias que pesavam contra seu pai.

Nair comenta que teve muita dificuldade em responder e que fugiu pela tangente: “Fabíola, você veio aqui [França] porque você escreve bem, porque você estava interessada em desenvolver essa sua carreira de escritora, então não perca seu foco. O foco é esse, o que você veio fazer aqui e o você quer fazer da sua vida”.

Explicou também que as relações entre pais e filhos são complexas e que ela deveria contornar os problemas com o pai da melhor forma. O assunto foi deixado de lado nos dias seguintes, durante os vários contatos que tiveram em Paris.

Meses depois, já em São Paulo, Nair soube que Fabíola estava voltando da França para morar com a mãe. E assim aconteceu.: “Ela chegou em casa e com o batom escreveu no espelho ‘Desculpem, mas eu não aguento mais‘ e se suicidou com um tiro na cabeça”.

É na sequência do seu depoimento que Nair se reafirma, com ênfase, a mulher excepcional que é. São palavras carregadas de sentimento de amor ao próximo, verdadeira aula da mais elevada empatia.

Vejam o Doc. Ele vai dizer mais que qualquer tentativa minha de traduzi-lo em palavras. Para a Nair, meus aplausos de admiração.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

2 comentários em “Nair Benedicto e a filha do torturador

  • 25 de dezembro de 2022 em 18:00
    Permalink

    Uma ótima narrativa sobre coisas tenebrosas.

    Resposta
  • 28 de janeiro de 2023 em 13:57
    Permalink

    Emocionei-me com o depoimento da Sra. Nair: o que o destino nos reserva. As ações e reações de nossos atos podem, ou não, surgirem de imediato; mas surgirão, a qualquer momento. Mas, não esperamos que hajam, razão pela qual os escroques, cheios de sua arrogância ficam cegos e emergem? homens de bem, religiosos, “quem me conhece sabe” que seria incapaz…. Mas, estão à nossa voltas… E um dia o boleto chega, para todos!

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *