Barbudinhos, espiões e carreiristas

Miguel Gustavo de Paiva Torres

No regime militar, os jovens diplomatas brasileiros que ingressavam no serviço diplomático viviam imersos em crises existenciais. Discos, livros e sexo, compartilhados no compasso do que ocorria mundo afora nos anos 60 e 70. O levante cultural, político e sexual que derrubou De Gaulle e Richard Nixon.

Eram, em sua grande maioria, idealistas, humanistas e progressistas educados no mundo moderno das democracias ocidentais, que viam-se submetidos ao terror da espionagem dos órgãos de segurança do regime militar, poder instalado no Brasil por um conluio entre os Estados Unidos e as chamadas “elites nacionais”. Os espiões, para disfarçar, vestiam a farda do seu serviço ou deixavam crescer a barba simbólica, marca da luta das esquerdas e dos aiatolás do Islam.

O grosso da cúpula castrense desse regime desprezava as maneiras educadas, polidas, dissimuladas dos servidores da carreira diplomática do Brasil, quase sempre muito acima da cultura e da inteligência dos que exerciam o poder apoiados em leis de exceção e na violência das prisões, torturas e assassinatos.

No ano em que comecei a trabalhar, 1976, já estava em andamento a “distensão lenta e gradual” promovida pelo general Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva e egressos do “movimento nacionalista” e progressista dos Tenentistas nos anos 20: rebeldes que abriram o caminho para a tomada de poder com a Revolução de 30 e com o seu desdobramento, sete anos depois: a ditadura getulista do Estado Novo.

Perseguiam o velho e sempre adiado sonho do Brasil do futuro: desenvolvimento econômico e social e Estado forte e autônomo no tabuleiro do poder mundial.

Naquele momento histórico, que se confundia com o estertor do colonialismo europeu e com a derrota do imperialismo norte-americano no sudeste asiático, o grupo da “Sorbonne” militar uniu-se aos diplomatas mais afinados em perseguição ao projeto de afirmação desenvolvimentista e de projeção mundial do poder do Brasil.

O reacionarismo conservador, nas hostes militares e no meio diplomático brasileiro, em princípio e por princípios, temia e enfrentava qualquer comportamento ou ação que se aproximasse do que era considerado “esquerdista ou comunista”. Se guiavam por interesses próprios e pela ideologização resultante de duas décadas de “guerra fria” entre Washington, com seus satélites, e Moscou, que expunha sua cortina de ferro e projeções asiáticas e latino-americanas.

Repetindo Getúlio Vargas, que colocou criminosos na Polícia Política e criou o Departamento de Imprensa e Propaganda, o DIP, os militares de 64 criaram o Serviço Nacional de Informações, o SNI e as Assessorias de Segurança e Informações (ASI) se espalharam, com seus espiões, por todos os órgãos do Governo Federal, estaduais, universidades, imprensa e mais. Atuavam sem limites no serviço público federal, especialmente nas carreiras de Estado, sujeitas a promoções com maiores retribuições pecuniárias e outros privilégios.

Muitos colegas diplomatas viram nessa rede de espionagem uma oportunidade única de ascender ao poder, com sucesso e vantagens em suas carreiras profissionais. Estes espiões atuavam sob a orientação da Divisão de Segurança e Informações (DSI), com sala na sede do Itamaraty.

A maioria dos colegas não gostava nem de ir ao andar ou mesmo passar perto da porta dessa soturna divisão. O problema principal residia nos postos no exterior onde ninguém sabia quem era quem e muitos dos espiões deixavam a barba crescer para se misturarem com os sempre suspeitos “barbudinhos”.

* Texto a ser publicado no livro “Itamaraty: por trás das cortinas”, a ser lançado em breve.

Um comentário em “Barbudinhos, espiões e carreiristas

  • 10 de março de 2023 em 17:46
    Permalink

    Agradável notícia: o lançamento do seu próximo livro, mais um para minha coleção. É um verdadeiro deleite ler seus livros, embaixador Miguel Gustavo.

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *