O jacaré da Flórida

Miguel Gustavo de Paiva Torres

Com o meu primeiro filho a caminho em 1983 e trabalhando ainda na administração do Itamaraty, em Brasília, consegui ser designado para uma missão transitória de dois meses no Consulado Geral em Miami, para substituir diplomata que necessitava se ausentar do posto por esse período.

Na Casa, este senhor era o mais notável e explícito colaborador do Serviço Nacional de Informações, o SNI. Conselheiro, já adiantado nos anos, estava em desabalada carreira para ser promovido e tentar chegar ao grau de embaixador.

Cheguei na véspera da sua partida e me apresentei à sua secretária logo cedo, no dia da sua viagem para o Brasil. Esperei horas observando os funcionários, envolto no inquietante silêncio e tensa atmosfera da área interna do consulado.

Horas depois, já perto da hora de embarcar, meu colega mais velho chegou, sisudo, me olhou de cima a baixo e entregou-me uma papelada para assinar: a protocolar passagem de direção e de responsabilidade pelo posto. Partiu.

Assumi e sentei em sua mesa, colocada em recanto escuro da sala, longe das janelas. Os funcionários fecharam o Consulado e foram todos, de uma só vez, para a minha sala. Faziam o tradicional sinal de silêncio, com o dedo indicador sobre os lábios.

Apontavam a porta, dando a entender que eu deveria sair da sala e do Consulado para poderem falar. Estupefato e curioso segui o grupo para o corredor do andar do edifício onde ficava a representação brasileira, no centro de Miami.

O mais velho, oficial de chancelaria muito conhecido no nosso serviço exterior, começou a explicar a inusitada movimentação.

Secretário, nós não podemos falar dentro do Consulado. Toda sua missão aqui está sendo gravada, em todos os recintos. Tudo o que conversarmos será ouvido por ele no gabinete paralelo que mantém na garagem de sua residência.

Havia uma moça, oficial de chancelaria, que tremia dos pés à cabeça, chegando quase às lágrimas. Outra, uma recatada senhora, neta de Getúlio Vargas, secretária do Cônsul, estava impassível, quase uma estátua.

Continuaram a preleção:

“Nós vamos deixar ligados os microfones ocultos algumas horas por dia e quando desligarmos, lhe avisaremos para falarmos à vontade. A sua vinda abalou muito o emocional do Chefe. Ligou até para a Superintendência da Polícia Federal de Alagoas em busca de informações sobre sua pessoa.

Normalmente ele muda a mesa de lugar para evitar atentados aéreos pelas janelas do edifício. Nunca faz o mesmo percurso com o carro para ir e voltar para casa. Sempre assusta os motoristas gritando em cima da hora para virar à esquerda ou à direita, com medo de sequestro.

Mulherengo, tem péssima fama com as senhoras dos círculos brasileiro e consular. Assediador contumaz, faz sua secretária trabalhar noite e dia recortando revistas e jornais para os seus arquivos secretos na garagem de casa.

Tem pavor de Cuba e de cubanos em geral. Acredita que será assassinado por um comunista cubano”.

Nossa colega mais jovem — a que tremia dos pés à cabeça — cuidava das comunicações do posto dentro de um verdadeiro cofre forte, que só podia ser aberto automaticamente por ele — a partir da sua sala —, quando ela pedisse para ir ao banheiro ou lembrasse que o horário de trabalho havia terminado. Tudo isso por meio de um sistema de som interno que podia ser ouvido por todos.

Eu evidentemente estava chocado. Mudo, perplexo. Recobrei a consciência e ri, um riso amargo. Disse então que nos dois meses seguintes ali se teria uma vida normal.

E assim foi. Ouvi histórias do arco da velha. Fiz amizade com todos os funcionários e passamos, juntos, um tempo agradável e produtivo. Inesquecível, diria.

O colaborador do SNI, o meu colega, conseguiu sua promoção e chegou ao último posto da carreira, morrendo logo em seguida. Era especialista, segundo me revelaram, em comprar todo tipo de bugiganga com novas tecnologias para envio ao SNI.

Também teria protegido, o quanto pôde, um dos filhos do então presidente Figueiredo, frequentador assíduo de Miami, onde supostamente fazia negócios atrás de negócios, inclusive com armamentos, segundo diziam os massacrados funcionários do Consulado Geral.

* Texto a ser publicado no livro “Itamaraty: por trás das cortinas”, a ser lançado em breve.

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