O passo maior do que a perna

Miguel Gustavo de Paiva Torres

No exame psicológico, parte do longo processo de admissão à carreira diplomática, realizado, nos anos 70, no Instituto Pinel, famosa casa de loucos do Rio de Janeiro, o objetivo principal seria, segundo comentavam todos os candidatos e antigos concursados, saber se o pretendente à carreira diplomática seria homossexual ou comunista.

Os militares mais embrutecidos e extremistas no poder tinham horror a diplomatas, intelectuais, jornalistas e artistas em geral. Os exames no Pinel eram um dos principais crivos do concurso. Em geral, eram péssimos seus psicólogos.

No governo Geisel, com militares mais esclarecidos e comprometidos com os interesses nacionais, o Itamaraty ressurgiu com toda sua força institucional, apesar da grande resistência e perseguição que enfrentou nos meios castrenses e nos invejosos ministérios chaves da Esplanada, lotados por conservadores raiz.

O que se fez, com o apoio explícito de Geisel e do seu grupo, foi ressuscitar a política externa independente, formulada por grandes nomes da República no governo de Jânio Quadros.

Augusto Frederico Schmidt, San Tiago Dantas, João Augusto de Araújo Castro e Afonso Arinos foram expoentes desse pensamento que trazia a sociedade brasileira, em seu conjunto multiétnico e com níveis sociais desiguais, para o centro da atividade diplomática do país.

Nesse rumo para o futuro, o Brasil se reconheceria como país universal, com suas raízes europeias, africanas, indígenas, asiáticas, global.

A política externa independente de Jânio metamorfoseou-se no pragmatismo ecumênico e responsável de Azeredo da Silveira, fortemente impulsionado em sua primeira fase pelo embaixador Ítalo Zappa, com quem trabalhei, antes de embarcar para meu primeiro posto, na Costa do Marfim, seguindo a onda africana que se levantava na Casa.

Mas havia um x da questão. Um problema central a ser superado. À exceção de Zappa e poucos outros embaixadores, os melhores quadros do Itamaraty recusavam-se a servir na África; principalmente na subsaariana, negra, e na Ásia.

Estavam acostumados ao luxo e aos prazeres dos salões europeus, de Buenos Aires, Montevidéu, com Punta del Este, Washington e Nova Iorque. Talvez Tóquio, com reservas.

África e Ásia eram bonitos no papel e no discurso, mas difícil, insalubre e penoso na vida real.

Ademais, os que aceitavam eram motivo de chacota desse grupo da “elite” e só recebiam, quando recebiam, migalhas da administração da Casa em recursos e pessoal.

Eram lançados ao mar tempestuoso, com cadáveres das guerras civis expostos e infestado por tubarões, águas vivas e corrupção.

Muita corrupção.

Poucos resistiam moralmente e fisicamente ao degredo e abandono. Alguns mudavam de hábitos, outros adoeciam permanentemente, ou sobreviviam, com a sensação do dever cumprido.

Certa vez, servindo como embaixador em Lomé, República do Togo, encontrei no corredor do segundo andar do Itamaraty, onde ficava parte da cúpula da Casa, antigo e muito querido colega, mais velho, pacato e sábio.

Fazia parte dessa chamada “elite”, especializado que era em comércio exterior e finanças, cotado inclusive para chanceler.

Comentei com ele como era difícil dirigir com eficiência e correção um posto sem funcionários e sem recursos. Cofiando a barba, riu e disse-me: “E você pode até terminar na prisão, pelo roubo dos outros. Atualmente — concluiu —, eu prefiro filosofar. Levar tudo isso filosoficamente”.

Nada tão verdadeiro e sincero havia escutado até então. O comentário calou fundo em minha alma, calejada pelo esfacelamento das ilusões perdidas no decorrer da minha caminhada pela realidade que marcou o passado e ainda é hoje a “Marca Brasil“, guerra das lagostas com a França, futebol, samba e carnaval.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *