José Geraldo Marques, Cristo, Marvel e a contracultura alagoana dos anos 60 e 70

Edberto Ticianeli

Não eram muitos, talvez duas dezenas de adeptos, mas marcaram profundamente a cena underground, o lado B da cultura alagoana naquelas décadas. O santanense José Geraldo Marques, então professor de Biologia, era o expoente do grupo. Liderava pelas palavras, com suas poesias influenciando toda uma geração de bardos. Lá estavam também, que me lembro (vou esquecer vários, com certeza), esbanjando sensibilidades, Lúcia Guiomar, Beto Leão e Arriete Vilela.

Era o tempo da contracultura, da negação dos costumes e das tradições, da contestação social, quebrando paradigmas. As sociedades conservadoras foram sacudidas. Rompia-se com a noção tradicional da família.

José Geraldo Marques em foto de José Ronaldo

Quando fizerem um estudo sobre o que provocou o esvaziamento dos clubes sociais a partir dos anos 70, especulo que se descobrirá que a contracultura foi determinante para afastar os jovens do exacerbado controle dos pais nessas instituições. Era o fim, por exemplo, do tempo dos namoros e casamentos arranjados.

O conteúdo contestatório desse movimento ampliou-se no Brasil após o golpe militar de 1964. Às barreiras culturais somavam-se a repressão política e sua repulsiva censura. As expressões artísticas foram manietadas e tiveram que procurar formas criativas para se realizarem.

Foi nesses anos de chumbo, que, em Maceió, José Geraldo Marques despontou com sua militância ambientalista e suas inquietantes poesias.

Tudo isso foi dito para informar que ontem (25) recebi da Rita Correia, prima do poeta, uma cópia da premiada poesia que foi símbolo dessa fase de José Geraldo Marques: Cristo ou Marvel?

É um achado de valor histórico inestimável, por traduzir as inquietações da época. Foi escrita em 13 de março de 1969, exatamente 90 dias após ser decretado o Ato Institucional nº 5, também conhecido como AI 5.

Cristo ou Marvel?

José Geraldo Marques

A criação segundo Marvel

(Como era costume na Páscoa, ofereceu-se Cristo ou Barrabás? O resultado vocês já sabem. Hoje eu vos ofereço Cristo ou Marvel? Escolham à vontade).

Cansado que estava Marvel
da sua própria figura
rasgou-lhe a máscara e a capa
E atirou-as ao universo
lindo dos nossos sentidos
escrevendo com elas:
façam se as duas terras que eu quero!
e fez-se
da natureza fantástica
em um copo de pepsi-cola
a criação segundo Marvel!

E faça-se!
E fez-se!

No início, fez-se a terra
suas manhas suas locas
suas pencas de banana
seus fogos Caramuru.

E faça-se!
E fez-se!

No segundo fez-se
a forma dos solos
minérios águas minerais
engarrafadas com gás
se não até melhor!

E faça-se!
mudou Marvel então o rumo
e outra terra planejou:
plantações de arranha-céus
super estradas, cinemas
propagável em notícias
revistas rádios tvs
satélites sondas viagens
navegáveis havaís.

E faça-se!
E fez-se!

Por fim viu-se o resultado
que de prever não foi difícil:
as ruas imensas cidades
de carros de carne suicídios /
batons nas caras das putas
bichas loucas varridas
patinando na solidão
na terra de Marvel /
supermercados cinema
noites dias (oh, maré!)
e no rio de bolinhas
cascatas LSD.

meninos meninas meninos meninas meninos meninas
meninos meninas rapazes mocinhas rapazes mocinhas
rapazes mocinhas homens mulheres homens mulheres
homens mulheres homens mulheres velhos velhas
velhos velhas velhos velhas velhos velhas

stop!
gritou então Marvel
e como Batman fez shazam!

stop!
mas era tarde no dia
e o sol não vai para trás!

stop!
são domingos invadida
tchecoslováquia invadida
vietnam bombardeado
morte a todos os presidentes
os negros dançam de horror!

stop!
como Batman fez shazam!

Estrela não das alturas
cá na Terra que é preciso
disse Marvel e fabricou
astros estrelas meninos
meninas carrões imensos
astronaves, astronautas
luas feias terras lindas
papéis picados heróis
— é preciso mais um herói!
disse Marvel e fabricou
bombas de ouro e napalm
estilhaços coloridos
rosas…
rosas de fogo e fumaça
átomos em briga explodindo,
disse quero e fabricou.

(ah, Marvel, faça um mundo todo colorido, flores nas ruas, nos ninhos, nos cantos do mundo o amor / ah, Marvel, faço um mundo só de sorvete, do cânhamo dos passarinhos, de azul de azul e azul / ah! Marvel, faça um mundo todo de fitas de girassóis nos espelhos, de frutíferas fruteiras, de flor de flor e de flor / ah! Marvel, faça!)

Eram os anjos que cantavam
no infinito madrugador
nas ruas tortas medonhas
nos terrenos atingidos
pelas setas da infância

nos andores do papel crepom!

Eram os anjos de harvard square
e de santana do ipanema

— ah, Marvel, faça!
— não!

disse o capitão e ordenou
o plano e a trama da terra
sensual e eletrônica

já era tarde no dia
já dormem os hippies no square:

(uma lua de concretos
espantalha os namorados
pelas ruas de neon)

       Stop!
como Batman fez shazam.

Em Maceió,
no dia 13/3/69

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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