Bob Dylan, Rolling Stones e Henry Kissinger
Miguel Gustavo de Paiva Torres
Para aqueles que não acreditam em Papai Noel é preciso recordar que ele sempre esteve por aí, entregando doces afetos e presentinhos para as crianças ao redor do globo.
É um personagem do inconsciente coletivo associado à compreensão, à punição e à proteção paterna para todos, inclusive para as meninas.
Henry Kissinger foi o Papai Noel da diplomacia mundial contemporânea. Acolhia, compreendia, recompensava e punia.
Também dissimulava e traía. Bebeu na fonte do mais importante teórico da diplomacia realista moderna, o historiador e diplomata George Kennan, crítico da diplomacia moralista que surgiu como arma da retórica hegemônica norte-americana no pós-primeira guerra com a criação da Liga das Nações e a “missão” de levar ao mundo os valores das liberdades individuais e coletivas, com o objetivo de atingir uma democracia global liderada por Washington.
Nascido em Furth, Alemanha, em 1923, Henry, um menino tranquilo e reflexivo, viveu sua infância nos turbulentos anos 20 da Alemanha, vendo e ouvindo discursos extremistas de comunistas e nazistas.
Judeu, em 1938 foi levado por seus pais, junto com o seu irmão Anthony, para os Estados Unidos, mais precisamente Nova Iorque.
Escaparam por pouco do Papai Noel nazista. 13 membros de sua família morreram em campos de concentração, tortura, assassinato e cremação de judeus.
Foi assim que o menino Henry aprendeu, cedo, a ser um realista. Na fogueira dos livros e do idealismo.
Leitor voraz conhecia profundamente a história dos humanos, da guerra e da paz.
Admirava os grandes diplomatas, que construíram as primeiras noções de equilíbrio geopolítico e diplomático entre as potências econômicas e bélicas mundiais.
Talleyrand e Metternich certamente estavam entre os seus favoritos, especialmente no quesito da dissimulação. Talento fundamental no exercício da arte diplomática e da sobrevivência.
Como Talleyrand, sobreviveu a métodos e governos transitórios e exerceu influência por décadas, sustentando suas convicções: negociar a paz e fazer a guerra. Fazer a guerra e negociar a paz.
Um realista, o Henry. Ao lado de um presidente da pior estirpe da politica norte-americana, Richard Nixon, vigarista e antissemita, o judeu de corpo e alma recebeu, em outubro de 1973, o Prêmio Nobel da Paz pelos Acordos de Paris, que concluíram oficialmente a pavorosa guerra do Vietnam. Kissinger nunca aceitou a versão de que os Estados Unidos foram derrotados no Vietnam.
Sorridente, ao lado de Nixon, no salão oval da Casa Branca, Kissinger dividiu simbolicamente o Prêmio Nobel da Paz com o presidente que detestava judeus e estava na soleira da renúncia. Watergate não resvalou um pingo de água na roupa impecável de Kissinger.
Centenas de milhares de jovens americanos foram triturados física e mentalmente nas décadas de 60 e 70 no Vietnam, Camboja e arredores.
No sudeste asiático, três milhões de pessoas morreram e ficaram debaixo dos escombros produzidos por bombas de fragmentação e napalm.
Tudo pela democracia que Kissinger sabia que nunca existiu e nunca existirá, a não ser em livros, discursos e jornais.
A televisão a cores com transmissão internacional é quem deveria ter recebido o Prêmio Nobel da Paz, juntamente com Bob Dylan, Joan Baez, o filme MASH e toda uma nova geração que, como eu, amava os Beatles e os Rolling Stones. Começava então a Era de Aquarius.
Aos 100 anos, multimilionário, o eterno consultor de governos e de corporações norte-americanas, chinesas, russas, europeias, africanas e asiáticas, “bon vivant”, apreciador da alta gastronomia e das belas mulheres, não poderia falecer sem antes fazer uma última visita a Pequim para um fraternal encontro com Xi Ji Ping. Afinal, foi ele quem levou o capitalismo, a riqueza e o poder mundial para a China de hoje.
O seu maior trunfo profissional. Faleceu no dia 29 de novembro de 2023.
Em sua memória, o jornal alternativo norte-americano, Rolling Stones, que sobrevive desde os meus tempos de adolescente nos Estados Unidos, tempos da Guerra do Vietnam e de Woodstock, publicou a seguinte manchete em sua edição de 29 de novembro de 2023. “HENRY KISSINGER, CRIMINOSO DE GUERRA, AMADO PELAS CLASSES DOMINANTES DA AMÉRICA, FINALMENTE MORRE”.
P. S.
Três coisas que vocês ainda precisam saber sobre Henry Kissinger
1. Em 1957 escreveu um artigo na revista Foreign Affairs defendendo o emprego de armas nucleares; em 1958 escreveu, talvez o seu mais famoso livro, sobre a importância das armas nucleares na nova ordem mundial.
2. Ainda recém-formado e doutorado em Harvard, foi levado pelo influente Arthur Sclheshinger, amigo de John Kennedy, para trabalhar no Conselho de Política Externa e Segurança Nacional do presidente bonitão e namorado da Marylin. O santo do católico John não bateu com o sangue do judeu Kissinger.
Veio a crise dos mísseis em Cuba; Kissinger era a favor de empregar armas nucleares táticas de baixa intensidade para exibir a força da Águia norte-americana. John não deu a menor pelota para o ambicioso garoto. Kissinger, frustrado e se sentindo humilhado, pediu demissão. Na eleição seguinte formou fila com Richard Nixon, a quem desprezava. Subiu feito foguete. Tomou conta da cena mundial.
3. Juntou em um só pacote política externa, segurança nacional e inteligência. Sabia, como Hoover, do FBI, tudo sobre todos nos EUA e no mundo: quem era ladrão, alcoólatra, viciado em sexo e drogas e o de que mais gostavam e não gostavam. Era também um mestre em inflar egos: em visita ao nosso país disse que para onde caminhasse o Brasil, caminharia a América Latina. Ele sabia que historicamente a América Latina detestava profundamente o Brasil lusitano.