A menina no ônibus

Miguel Gustavo de Paiva Torres

Quarenta anos de Paris não é pouca coisa.

Táxi, metrô, ônibus e “dodô”.

Nos últimos anos ela preferia o ônibus. Sempre a mesma linha, guarda-chuva na mão e a curiosidade de sempre.

Ora visitar filhos e netos, ora fazer compras ou gastar as canelinhas entre um ponto e outro da cidade.

Muita chuva. Ninguém liga. É como se já tivessem nascido sem teto e amamentados por pingos de água. Finos, médios e, às vezes, grosso do tamanho de uma bela tempestade com raios e trovões assustando os citadinos da antiga, velhíssima cidade de Paris.

Mas ela era uma menina, no coração, na alma e em seu imaginário. Plena de curiosidade, mesmo sabendo que o gato morreu por causa da sua curiosidade pelo leite. Envenenado.

Já tinha visto de tudo. Mas não se conformava com a Tour Montparnasse, tentativa fracassada de acabar, de uma vez por todas com o romantismo e a harmonia da Cidade dos Boulevards, e muito menos dos novíssimos edifícios residenciais construídos com contêineres abandonados, refeitos e pintados em cores “jovens” e chamativas.

Na verdade, toda essa mudança urbana ainda contida já era fato consumada e absorvida pelo frio coração da menina no ônibus.

A sua curiosidade mesmo era observar as pessoas, no ponto do ônibus, dentro do ônibus, e batendo canelinhas no dia a dia de Paris.

Como a cidade é um resumo étnico de todas as raças e cores do mundo, já fazia muito tempo que ela não conseguia ver um conterrâneo, ou seja, um francês ou uma francesa, em carne, osso e língua.

Talvez no interior. Em Paris eram todos transraciais com cheiro de inverno ou transgêneros machos, fêmeas, hermafroditas, perfumados com água de chuva e flor de Lis.

Cidade que não é de ninguém, mas de todos que a queiram querer.

Como ela queria. Mesmo fazendo o percurso habitual do dia a dia, Paris era sempre uma festa. Até na ocupação alemã a cidade dormiu em noites obscuras embebida em sexo e champagne. Champagne de verdade do terroir da Champagne.

Única cidade do mundo onde o bar era o “lar doce lar” de todos. Casa e apartamento só para dormir ou para inválidos. A casa de todos incluía também o resto da cidade, com a Notre Dame, o Rio Sena e suas pontes.

— Quanta gente estranha, mon dieu, pensava inquieta a garota. Só se acalmava quando via as velhinhas centenárias e corcundas ainda batendo canelinhas pelas ruas e parques da cidade; mesmo em dias de neve.

Namoradas e namorados, outra modalidade afetiva que só restava em Paris, assim como fumantes, de tabaco puro e enrolado no papel ou mais moderno, nos vapes, também úteis para ervas medicinais.

Difícil mesmo era dormir, tarde da noite, depois de ficar observando da janela os habitantes da cidade indo e vindo, sem destinos certos.

Talvez um bar ou um resto — imaginava —.

O importante era conseguir dormir, acordar e ir rápido para o seu ponto de ônibus. Queria ver e sentir Paris outra vez.  Para sempre. Eternamente.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *