Ensimesmamento

Oswaldo Pife

A palavra não é nova. Saiu em “Cem anos de solidão“, do Gabo. Tem muito mais a ver com a solidão “fantástica da realidade” do seu personagem taciturno do que mesmo com o que eu quero dizer. Embora o que eu quero dizer não teria sentido sem essa palavra.

Os ecos do pensamento são as principais motivações de qualquer ser humano viver plenamente em solidão. Aprendi isso em “Cem anos…“. Não é querer estar só. É ter a certeza de que houve adestramento das coisas do mundo por quem estava por ali, na soleira da vida. E isso só é possível com a solidão.

A solidão do Coronel Aureliano, o personagem sorumbático de “Cem anos…”, não revela um individualismo subaquático, a deitar-se sob os lençóis da escuridão por vontade própria, e sim uma postura humana de independência. Em sua mais emblemática frase, “Cem anos…”, na voz do Aureliano, dita uma frase que transformou o livro num objeto magnético e, sem trocadilhos, fantástico: “o segredo de uma boa velhice não é mais que um pacto honrado com a solidão”.

O ensimesmamento transfere as dores do mundo para si mesmo, não para os outros. É a independência do pensamento, a alegria da nostalgia, o poema da melancolia e a crônica da consciência pura. Apenas os grandes cérebros são capazes de ensimermarem-se. Não há inteligência sem isso, sem solidão.

Os que se compadecem com o próprio destino não são dignos de uma verdadeira solidão, pois o lamento não faz parte dela. Ela, a solidão, é livre dessa consciência de derrota que tanto entristece a mais inocente das verdades humanas: a morte.

A solidão não é abarrotada de vestígios de um espelho que denuncia e reflete os próprios pecados. Não é abandono. A solidão é a capacidade de se sentir só e feliz, mesmo sob o barulho involuntário do mundo ao redor.

Ter solidão é um dom.

Não há deserto nela, nem muito menos uma estrada árida. Ela suspende a própria vigilância como uma proteção paradoxal de sua liberdade de viver sozinha.

Quanto voo, quantas asas de imaginação, quantas cores são pintadas numa tela aberta e quantas notas são compostas sob a batuta da solidão! Quantos…, quantas…!

Vi isso no personagem de 90 anos do “Almoço de Domingo”, do incrível autor português José Luís Peixoto, que “aquilo que foi esquecido e o que não existiu ocupam o mesmo lugar”.  Isto é solidão: A lembrança e a imaginação.

A única dor do homem de alma impenetrável do “Almoço” estava na certeza de que o espetáculo de sua vida chegara ao fim, não ao começo de um ardiloso passado dos seus ais, mas ao fim de sua felicidade solitária, que só ele sabia do que se tratava. A felicidade era dele, não dos outros. Isso é solidão.

Moer as dores não é solidão.

Mastigar os arrependimentos é uma volta vertiginosa e inútil à purificação dos pecados, já que as escalas desalentadas do pensamento fazem parecer que a vida não valeu a pena, sob uma madrugada lúgubre da tristeza.

A solidão é livre e feliz. Nela residem as vontades indomáveis e os desejos sonhados. É uma praça pública do pensamento e uma ardorosa trama de se fazer real.

Quase perdi a palavra “Ensimesmamento” de tanto falar em solidão. Mas foi a palavra, não a ideia, felizmente, porque as duas se merecem e são cúmplices.

A solidão é para poucos, apenas para as mentes que são transeuntes desconhecidos em movimentos simples de uma rua para outra, como o personagem do “Almoço…”, a ter a idade do mundo e de saber que sua vida terminaria numa explosão de aplausos silenciosos.

Não tanto diferente do Coronel Aureliano Buendía, de “Cem anos…”, quando perguntado pelo passante em sua calçada:

“— Como vai, Coronel?

— Aqui, esperando meu enterro passar.”

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