Sem coração

Miguel Gustavo de Paiva Torres

A experiência cinematográfica reproduz, em grande parte, as experiências das vidas pessoais dos espectadores, do seu tempo e de suas culturas adquiridas por contos dos outros ou por suas próprias visões e imaginação do mundo como ele é, como ele foi e como ele poderia ter sido ou poderá ser.

Nara Normande e Tião e toda a garotada que enche a tela com corações, amor, beleza, surpresas, afloramentos sexuais, e, violência, às vezes cega e muda, são produto da estética do tempo presente, dos brilhos das estrelas que só agora estão chegando no litoral alagoano, hotéis abandonados, sem fantasmas, e casas de veraneio ou residências propositadamente afastadas em troca do barulho pelo marulho.

Um marulho diferenciado pelo pulsar dos corações daqueles a quem são arrancados, no dia a dia, pedaços vermelhos dos seus corações marítimos e tripas, como baleias descarnadas na misteriosa e alva areia branca do mar azul e do vento verde dos coqueirais.

Nara, Tião e toda essa maravilhosa garotada encanta pelo frescor luz e música que traz ao novo Cinema Novo. Tem inspirações complexas: sobretudo as do abandono material e afetivo no neorrealismo italiano do pós guerra e nas abstrações posteriores de Antonioni e Bertolucci. Kléber Mendonça está presente, lateralmente, suavemente, sobretudo na fotografia surpreendente e na música. Temos sempre, ao longo do filme, o Som ao redor.

Mas essa menina Sem Coração, é uma atriz excepcional, diferente. O nome dela dá nome ao filme com o peso e o amor de um enorme coração de baleia. Sem falar; só no olhar traduz o mistério e o encanto da pureza adolescente no aprendizado do verbo amar, na transgressão, no direito de amar do seu jeito, de ser feliz, pobre e marginal, nas cercanias de casas de veraneio e residências de pessoas que se acham mais pessoas do que as demais pessoas porque podem até privatizar o mar, o céu e as estrelas.

Nara Normande chegou para iluminar a noite tropical do cinema brasileiro. O olhar feminino e suave, ferozmente suave, de Nara Normande é o mais novo do novo cinema brasileiro. Mesmo afastado tantos anos e vivendo em quase eterno exílio da minha privativa terra e mar das Alagoas, foi com o sentimento infantil que o meu coração se encheu de orgulho, com a beleza do filme de Nara e de sua troupe à la Moliére. Um beijo do coração. Ah, está na Netflix, para o mundo inteiro ver.

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