Os avanços da China na América do Sul
O Contexto Alagoas entrevistou o experiente embaixador Miguel Gustavo de Paiva Torres sobre a posição do Brasil diante dos avanços do governo chines na América do Sul.
P. No dia 14 de novembro de 2024, o presidente da China, Xi Jinping, esteve no Peru inaugurando a primeira fase do que será em alguns anos maior porto comercial da América do Sul, o complexo portuário de Chancay, objeto de investimentos totais estimados em US$ 3,4 bilhões. Em março deste ano já havia sido anunciado o projeto de implantação da Ferrovia Transoceânica, resultado de uma parceria entre o Brasil, o Peru e a China. Essa expansão comercial chinesa na América do Sul incomoda os EUA?
R. A expansão comercial e econômica da China é global. A América do Sul é apenas um cenário complementar com viés estratégico geopolítico de grande alcance para a China, por se tratar do conhecido “Quintal dos Estados Unidos“, que assim passou a ser tratado a partir da segunda metade do século XIX, após a invasão do México pelos Estados Unidos e com as diversas tentativas de ocupação da Amazônia e do Rio da Prata, alegando que “descobertas científicas” garantiam que esses dois rios, com passagem pelo rio Paraná, seriam meras continuidades de lençóis do Rio Mississipi.
Essa conspiração foi derrotada pelos esforços conjuntos de Pedro II, ao lado do seu chanceler da época, Paulino Soares de Souza, o Visconde do Uruguai. Esse enfrentamento contou com o apoio financeiro e político do Barão de Mauá. Essa tentativa se fez por duas partes: dividir politicamente a América do Sul buscando apoio do Peru e Bolívia, então países mais frágeis e fáceis de capturar pelo suborno e alguns trocados e mais infraestruturas, na segunda parte, favorecer a aliança entre governo, marinha e empresários sulistas dos Estados Unidos, atraídos pela possibilidade de colonizar a Amazônia utilizando mão de obra escrava norte-americana, reforçada pela mão de obra escrava brasileira. Cuba nesse momento já estava sob domínio informal dos EUA, que pretendiam substituir a dominação inglesa e europeia por completo, cumprindo assim o seu “Destino Manifesto“.
P. Quais os ganhos para o Brasil com esses investimentos?
R. A saída para o Pacífico, como vários outros projetos estruturantes do Estado brasileiro, começa ainda no governo militar, com Geisel e Figueiredo e continua, no tempo, como “projeto de Estado” tocado pela diplomacia, por setores esclarecidos do estamento militar e por empresários. Um objetivo a ser atingido para facilitar e dar competitividade aos fluxos econômicos e comerciais do Brasil com a Ásia. Inicialmente, o projeto previa que a Ferrovia Transoceânica iria até o Chile, mas a Bolívia queria cobrar pela passagem dos trilhos por seu território. Foi o embaixador Raul Leite Ribeiro quem se empenhou para que o destino fosse o Peru.
Naquele momento, o Brasil já estava chegando com força na África com Azeredo da Silveira e Ítalo Zappa, começando a “incomodar”. A China ainda era o país da poeira e das bicicletas.
Enquanto o Brasil sofria na redemocratização, com o aperto das grandes potências na então questão central da dívida externa, controlada diretamente pelo poder de Washington com suas projeções fiscalizadoras, cobradoras e bloqueadoras do FMI, Banco Mundial, BID e outras organizações controladas pelos interesses das grandes economias do norte, todos os tipos de obstruções foram colocados a qualquer projeto autônomo e desenvolvimentista do Brasil, nos planos interno e externo. O Brasil poderia ser, no máximo, um país agrícola para suprir necessidades materiais dos poderosos. Um dos movimentos concretos mais imediato foi o impedimento do país se tornar uma potência nuclear em parceria com a poderosa Alemanha, renascida das cinzas pelo apoio financeiro norte-americano no pós guerra. Já estávamos no final dos anos 70.
P. Desde quando os EUA tentam impedir essa Nova Rota da Seda?
R. A Rota da Seda ou melhor, a retomada da antiga rota da seda que unia comercialmente o ducado de Veneza à Ásia, só foi possível com a explosão espetacular da economia chinesa e do planejamento central do país para ocupar o lugar de primeira potência mundial a médio e longo prazo. Começou pela própria Ásia, envolveu todo o continente africano, inclusive a já poderosa África do Sul reconquistada por Mandela e se projetou na América do Sul e no Caribe investindo forte em infraestrutura portuárias aeroportuárias e energia elétrica em todas suas vertentes.
P. Há possibilidade de alguma retaliação por parte dos EUA?
R. Os Estados Unidos já não dispõe do poder de controle mundial total. Cada vez mais depende do uso da força e utiliza lateralmente a política e a diplomacia. Caso consigamos reformas significativas e continuidade do antigo poder da ONU em novo organismo democrático e inclusivo, em sua missão de prover segurança e desenvolvimento sustentável global, a tendência é a do isolamento acelerado dos EUA em seus próprios problemas internos, cada vez mais delicados e graves. Vamos torcer para o trem não descarrilhar em nova guerra mundial.
P. Como o senhor avalia a intervenção da diplomacia brasileira nessa questão?
O Brasil sua diplomacia, com alianças militar e empresarial, nunca se afastou dos seus próprios projetos de longo prazo. Sarney deu continuidade à aproximação com a China e Collor assinou e levou em frente a parceria estratégica para construir e lançar satélites sino-brasileiros. Todos os presidentes, de Itamar a Lula 3, sempre colocaram a potência chinesa como parceria vital do nosso futuro.