O Armário na Escada

Miguel Gustavo de Paiva Torres

Não há nada mais difícil e perigoso do que subir ou descer uma escada carregando um armário.

Lembro da minha mudança em Praga: quatro checos amarrados por cordas tentando levar um armário quatro andares acima do rés do chão, como se diz em Lisboa.

Nunca vi uma série igual a esta: A ESCADA, com Colin Firth, idealizado e realizado por uma produtora francesa, a partir de um documentário, também da NETFLIX, chamado igualmente a Escada, lançado há alguns anos.

O documentário tratava sobre assassinato. Feminicídio. Um marido empurra sua mulher escada abaixo em claro homicídio doloso. Claro apenas para quem queria simplificar e resolver o crime ou o não crime.

Sophie, a montadora da série colocou os óculos e não viu nada claro. Como editora da série, em Paris, transformou-se como pessoa infeliz que era vivendo um casamento medíocre de ocasião em uma mulher de fibra única, como são cada uma das mulheres do mundo, feitas em fibra única.

Obcecada para descobrir o que realmente aconteceu naquela casa de um milionário escritor casado com uma milionária financista, em segundo casamento, com três filhas e dois filhos, na rica cidade de Durham, na Carolina do Norte, Sophie vai até o fim: apaixona-se pela história, pela família e pelo suposto assassino viúvo.

O sonho americano materializado na casa luxuosa e na família perfeita; no lugar destinado à alta classe média e a todos os valores sagrados da família e da pátria.

Fuzileiro naval (marine) combatente de guerra e ousado, o másculo, generoso e também amoroso escritor tinha um segredo.

Naquela época, um segredo devastador para um macho combatente e pai de família: gostava de fazer sexo com mulheres, mas preferia homens.

Na cena social do dia a dia, mulheres. Nos escaninhos do seu computador e do outro lado da claridade das ruas e eventos, garotos e homens, cerne da sua essência e desejo.

Não foi fácil abrir o armário. Mas Sophie, apaixonada pelo homem e por sua história, escancarou o armário focando em seu trabalho de editora da série não o acidente ou incidente da escada, mas a vida sombria e amargurada de um carinhoso pai de família e amoroso esposo no subúrbio “perfeito” do sonho americano.

A série não apenas vai fundo na história da morte na escada e no armário do dono da casa. A série filma a própria série e traz um realismo social e intimista que nem mesmo um documentário distanciado da vida comum da família poderia trazer.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

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