Aldo Rebelo: “As vivandeiras já pedem um bolsonarismo sem Bolsonaro”
Entrevista concedida pelo ex-ministro Aldo Rebelo à Maria Cristina Fernandes do Valor Econômico em 28 de março de 2019.
Valor: Como o senhor avalia o papel dos militares neste momento de instabilidade política que marca os 55 anos do golpe militar?
Aldo Rebelo: Os militares sempre estiveram presentes em momentos decisivos de nossa história. Do momento fundador do território brasileiro na Batalha dos Guararapes (1648), quando o Brasil decidiu ser um só, ao golpe de 1964. A instituição se ligou à independência e teve presença decisiva para evitar que o país se fragmentasse na Regência quando houve quatro guerras civis simultâneas. Teve uma participação decisiva na abolição porque os oficiais ganharam um grande apreço por seus soldados negros e voltaram do Paraguai repudiando a escravidão. Veio a República com protagonismo decisivo e apoio da aristocracia cafeeira. Mantiveram-se protagonistas no tenentismo, que foi uma guerra civil dentro do exército, e na revolução de 1930, na deposição de Vargas até a vitória em 1964 em aliança com liberais. Então não dá para imaginar que o Brasil possa edificar uma saída para o impasse sem a participação das Forças Armadas.
Valor: O que significa uma colaboração protagonizada por um governo que tem na Presidência e na vice dois admiradores de um coronel torturador?
Rebelo: Como todas as instituições as Forças Armadas carregam virtudes, mas também deformidades e erros. Essa questão se traduz na convivência de duas doutrinas antípodas, como a defesa da tortura, que Bolsonaro defende e o próprio Mourão chegou a celebrar, mas não é a doutrina do Exército.
Valor: Mas é a doutrina de quem hoje comanda o país com oito militares no primeiro escalão…
Rebelo: Mas essa doutrina é relativizada por outras convicções. Bolsonaro e Mourão poderiam recorrer ao maior líder do Exército que é o general Osório. Há uma ordem do dia de 1866, da Guerra do Paraguai, em que ele diz que um inimigo pacífico e desarmado deve ter sua vida respeitada por um soldado de honra. Ele havia tomado conhecimento das atrocidades mas queria registrar que a cúpula militar não concordava com isso.
Valor: Mas que consequências há para país o fato de o Brasil estar sendo comandado, em meio a uma crise, por duas lideranças de origem militar que cultuam a tradição da tortura?
Rebelo: A consequência não é boa porque o papel do líder não é só administrar. Para isso se recrutam administradores. O papel do líder é conduzir, educar e civilizar no melhor sentido da palavra. Quando um chefe militar fala ele está formando seus subordinados. Quando Bolsonaro e Mourão fazem o elogio da tortura isso não ajuda a civilizar gerações de militares e brasileiros.
Valor: O vice Hamilton Mourão hoje é visto como um moderado que se contrapõe aos frequentes devaneios do presidente. Como o senhor viu o evento da Fiesp em que ele se cercou de centenas de empresários e expôs suas ideias para o país?
Rebelo: Essa moderação adquirida é uma boa notícia que vem do choque que a realidade exerce sobre os indivíduos. As pessoas mudam à medida que assumem responsabilidade.
Valor: Está em curso um novo golpe?
Rebelo: Não vejo condições para nenhum golpe. No máximo, uma tentativa de bolsonarismo sem Bolsonaro ou um bolsonarismo perfumado, de salão. Mas isso só é possível pelas vias constitucionais. Não vejo atalho nem disposição das Forças Armadas nem na maior parte da população em abraçá-lo. O Brasil está condenado a enfrentar desafios pela via democrática.
Valor: O senhor vê o germe da desestabilização na atuação do vice?
Rebelo: O organismo dispõe de imunidade muito forte contra esses germes. Independentemente de quem possa ter pesadelos com essa alternativa, não vejo como possa se viabilizar.
“Foi um erro ter apresentado o projeto da Previdência dos militares junto com a reestruturação da carreira”
Valor: Os militares aparecem na reforma da Previdência como a corporação mais poupada. Sua reversão, pelo Congresso, não pode gerar uma instabilidade nos quartéis que já se imaginava descartada?
Rebelo: Não creio. As Forças Armadas gozam de dois sentimentos antagônicos, o do respeito e o da indiferença. Das Forças Armadas só são lembradas as virtudes, nunca seus padecimentos. Então um general chega ao fim da carreira ganhando menos que um procurador que acaba de entrar no Ministério Público. Isso é incompatível com a responsabilidade das duas instituições. Os militares reivindicam tratamento diferenciado porque se trata de uma corporação em que a morte não é acidente de trabalho, eles não têm insalubridade nem habeas corpus.
Valor: Mas eles têm soldo num momento em que o país, além das carreiras privilegiadas, tem 13 milhões de desempregados e um gigantesco buraco fiscal. Falar em recuperar prerrogativas não se torna um contrassenso?
Rebelo: A medida foi estigmatizada como ruim porque o momento é de renúncia de direitos. Os militares deveriam ter apresentado as questões em duas etapas. Deveriam ter feito as concessões necessárias e possíveis e depois tratar da carreira. Os deputados devem explicar às professoras que elas terão que contribuir. E os comandantes, aos sargentos e viúvas, que a recomposição deve vir num momento posterior.
Valor: Como o senhor justifica que nesse momento o procurador Deltan Dallagnol seja agraciado com uma medalha militar [Ordem do Mérito Judiciário Militar]?
Rebelo: A notícia que me chegou é que foi uma decisão do ano passado, concretizada agora. Há um setor das Forças Armadas que traz uma herança antigetulista de apreço por instituições dessa natureza, mas isso pode ser interpretado como tomada de partido na disputa entre as instituições. Há um conflito entre o Ministério Público, a cúpula do Judiciário e o Congresso. Então não foi um bom momento para isso. Pode ter essa interpretação.
Valor: Mas os militares não veem hoje a Lava-Jato com um papel de intervenção na institucionalidade que um dia foi das baionetas?
Rebelo: Há uma disputa de poder. Diante da desorientação que permeia a vida nacional, essas instituições voluntaristas e narcisistas tomaram de assalto a agenda do país e passaram a presidir as decisões mais importantes. Sentiram-se como os deuses da antiguidade que poderiam se apossar do destino e da tragédia. Quando o país reencontrar uma agenda de
retomada do crescimento, redução das desigualdades e valorização da democracia, a agenda das corporações jurídicas e de seu ativismo tenderão a perder relevância e a voltar a seu leito de origem.
Valor: Como se explica que o general Villas Bôas tenha recomendado voto no Supremo quando o réu era o ex-presidente Lula e ficado calado no caso do ex-presidente Temer?
Rebelo: O general Eduardo Villas Bôas é um dos brasileiros mais preocupados com as vicissitudes do país, mas não compreendi algumas dessas manifestações que foram atribuídas por alguns a circunstâncias internas das Forças Armadas que ele comandava. Ele recebeu censuras graves do Congresso e da imprensa. Acho que percebeu, naquele momento, que a manifestação não tenha contribuído para a pacificação do país.
Valor: As Forças Armadas não perdem relevância com a subordinação em que a política externa colocou o Brasil frente aos Estados Unidos?
Rebelo: O protagonismo militar é como o colesterol. Tem o bom e tem o mal. O bom é a construção material e de valores com os quais as Forças Armadas têm contribuído para o país. O outro, é aquele a que se referiu Góes Monteiro [ministro da Guerra de Getúlio Vargas], nas memórias que deixou. Já amargurado, dizia que se ressentia muito do espírito gendármico e miliciano das instituições tidas por militares.
Valor: O governo Bolsonaro abriga esse espirito miliciano e gendármico?
Rebelo: Ele é latente no espírito de alguns integrantes e é alimentado, muitas vezes, pelas vivandeiras que vivem fora dos quartéis e cultuam o golpismo. Os próprios militares sempre advertiram contra esse espírito. Não sei por que as Forças Armadas aceitaram assumir sozinhas a herança de um golpe que não foi só delas. Foi dos empresários, da embaixada americana, da mídia, da classe média e da Igreja. Eles entraram por último. Criaram uma comissão da verdade em que não apareceu um único civil e jogou tudo nas costas deles.
Valor: Mas quem protagonizou uma ditadura com mortes e perseguições foi um governo militar…
Rebelo: Claro, e deve responder por isso, mas não fizeram sozinhos. Não é educativo fazer a leitura do período absolvendo quem preparou banquete.
Valor: Como o senhor viu o envio de um general brasileiro para o Comando Sul das Forças Armadas americanas?
Rebelo: Até hoje não foi bem explicado. Não se sabe qual foi o acordo de cooperação e quem vai pagar o salário dele. Isso era hábito de outros exércitos sul-americanos que as nossas Forças Armadas sempre contornaram. Sempre tiveram cuidado de mandar um servidor civil e não um militar.
Valor: A perspectiva de uma cooperação que ajude a modernizar equipamentos não é o que move?
Rebelo: Espero que não porque seria a pior possível. Cooperação deve servir para aperfeiçoamento profissional. Para receber sucata como aconteceu no passado é a pior solução possível. A cooperação não deve implicar nenhum grau de subordinação.
Valor: Quais são os riscos de envolvimento numa ação armada na Venezuela?
Rebelo: Não temos a mínima condição de promover a intervenção na Venezuela. Isso contraria a Constituição e a doutrina de defesa, que desagrada o presidente da República e o chanceler. A doutrina que vigora foi preparada por consenso e submetida às três Forças e ao Itamaraty e ao Congresso.
Valor: Um conflito como esse não exporia também a inferioridade bélica?
Rebelo: Os venezuelanos dispõem de aviões Sukhoi de última geração de baterias aéreas S-300 russas e de submarinos operacionais no mar do Caribe, mas o Brasil nunca cogitou desse confronto. Percorri essa fronteira mais de uma vez. Sempre vi essa relação muito próxima entre os dois exércitos. São as duas únicas instituições presentes nessas duas fronteiras, onde há ilícitos e garimpos. Isso nunca extrapolou porque os dois exércitos mantêm cooperação que há de superar a retórica do presidente e do seu chanceler.