A morte como “Dano Colateral” nos tempos do coronavírus
Edberto Ticianeli – jornalista
Na filosofia da guerra existe o conceito de dano colateral e os militares o conhecem bem. Identifica as pessoas ou áreas atingidas em um ataque, que por erro dos agressores ou por estarem nas proximidades do verdadeiro alvo, sofrem estragos.
Quando, num momento de crise, governantes priorizam salvar a economia para fazer sobreviver o sistema lucrativo que lhes dá fortuna, mesmo que para isso sejam sacrificadas vidas humanas, também tratam estas mortes como dano colateral.
É preciso salientar que essa atitude desumana sempre esteve presente na história, desde que o homem começou a explorar o homem.
A escravidão, o primeiro destes sistemas, submeteu e animalizou o ser humano, transformando-o numa mercadoria como um cavalo ou um boi, tendo seu valor associado à sua capacidade produtiva.
Quando velhos ou incapazes por limitações físicas eram descartados, nos livros caixas dos seus exploradores, ao lado dos apelidos inseria-se a anotação: “perdas e danos”.
Na cultura religiosa, também está presente o dano colateral, principalmente entre os vitimados por serem pecadores. Basta ver as referências bíblicas ao Dilúvio ou à Sodoma e Gomorra para se constatar quantos morreram para que o mundo fosse “melhor” e habitado somente pelos “bons”.
Há outro tipo de dano colateral, que não é lembrado como tal por já estar incorporado à logica da quase totalidade das sociedades atuais. São os mortos pela desigualdade social, principalmente por sua face mais exposta: a violência.
Danos colaterais virulentos
Este conceito também está sendo empregado quando se nega a necessidade da adoção do isolamento social para conter a expansão pandêmica do coronavírus.
Uma corrente de pensamento liderada pelo presidente Bolsonaro, representando os interesses da indústria e do comércio, advoga a necessidade de se diminuir a amplitude definida pelas medidas adotadas pelos governadores e prefeitos.
Argumenta-se que, num futuro próximo, serão maiores os números dos mortos, vítimas de uma economia enfraquecida pela paralisação expressiva da atividade econômica.
A questão posta assim, de forma dicotômica, pode induzir a se ter que escolher entre a morte de poucos, com o coronavírus, ou a morte de muitos, com a crise econômica. A velha e surrada lógica do menor dano colateral é bradada com maestria.
Mas se a escolha não tiver que ser somente entre estas duas opções?
Como, segundo números de 2018, há no mundo 2.153 bilionários, cujas fortunas chegam a US$ 9,1 trilhões (R$ 29,3 trilhões), nada mais fácil que “solicitar” deles uma parte desse patrimônio e assim garantir que, no mínimo, ninguém morra de fome.
Como sei que essa alternativa mexe com a estrutura do sistema de exploração e acumulação reinante na maioria dos países, e que poucos estão dispostos a empregá-la, fica somente a possibilidade de o Estado tentar adotar as tradicionais medidas keynesianas., ou seja: descarrega dinheiro público na economia para salvá-la.
Essa decisão já foi tomada pelos países mais ricos, os do G20.
A poderosa China deu exemplo. Investiu pesado e colocou sob controle a pandemia. Agora recomeça a movimentar a sua economia e a enfrentar as perdas.
Entretanto, para um país que está fora desta elite econômica mundial e enfraqueceu o Estado ao aplicar medidas liberais, haverá dificuldades para executar com êxito esse verdadeiro “cavalo-de-pau” na economia.
Em alguns deles, o obstáculo maior está no componente político. Terão a incumbência “inglória” de tentar tirar dinheiro de quem tem. Missão quase impossível para os que não têm a perspectivas mudanças estruturais.
Tenderão a optar pela saída mais “fácil” e “barata” para eles: vão dizer que a doença é uma “gripezinha”, derrubar as barreiras sanitárias e deixar morrer milhares.
As mortes, esses “detalhes”, se justificam dizendo-se que foram meros danos colaterais.
Nestes países há somente uma chance dessa política perversa não acontecer: o capital global forçar a periferia do sistema a seguir no mesmo caminho indicado por eles, o de salvar o capital, mesmo que para isso se abandone temporariamente o liberalismo.