Telecatch Guarina

Por Edberto Ticianeli – jornalista

Eram poucas as ruas da Ponta Grossa, bairro do Baixo Pirulito em Maceió, que não ficavam enlameadas no inverno. Verdadeiras valas eram abertas nas ruas para facilitar o escoamento das águas das chuvas, mas o lamaçal continuava.

O cruzamento das ruas Guaicurus e Assembleia, atual Moacir Miranda, foi por muitos anos um desses pontos alagadiços, raramente atendido pelo poder público.

Mas um desses serviços entrou para a história do bairro por alterar a rotina do lugar.

Na manhã do sábado, 3 de dezembro de 1966, caminhões da Prefeitura descarregaram no local toneladas de areia retiradas das dunas do Trapiche.

A Prefeitura aproveitou o aterramento que realizava no entorno do córrego das Águas Negras, próximo ao I Centro de Saúde Pública, na Praça das Graças, e levou algumas cargas para a Rua da Assembleia, provavelmente atendendo a pedido político.

Esse aterro das Águas Negras iria se transformar no Maracanã da Levada, o famoso Areião.

Mal os caminhões se afastaram e a Rua da Assembleia foi invadida, literalmente, por dezenas de crianças que se sentiam na praia.

Claro que imediatamente surgiu a ideia de se jogar futebol, mas houve reação dos moradores, que temiam por suas vidraças.

Foi aí que o magro do Quia resolveu executar alguns golpes dos lutadores do Telecatch Montilla, despertando o interesse de todos.

Telecatch Montila

Para os mais novos, que não testemunharam a chegada da televisão em Maceió, Telecatch Montilla era um programa de luta livre do tipo mexicana, ou seja, um teatro que simulava a luta livre tradicional.

Surgiu em 1965 na TV Excelsior do Rio de Janeiro como Telecatch Vulcan. No final de 1966, com um novo patrocinador, mudou para Telecatch Montilla. Na Record, nos anos 70, já era Os Reis do Ringue.

Seu principal astro foi o italiano Ted Boy Marino, que dividia o ringue com dezenas de lutadores, entre eles os mais conhecidos foram Verdugo, Rasputim, Tigre Paraguaio, La Múmia, Mongol, Viking, Pantera e Celso, o juiz “ladrão” que sempre procurava prejudicar o “mocinho” Ted Boy Marino.

Pois bem, estas lendas do ringue levavam milhares de telespectadores todas as segundas-feiras, às 22 horas, para a frente das TVs brasileiras, incluindo as poucas unidades instaladas em Maceió.

Naquele dia, praticamente todas as televisões da capital “tentavam” sintonizar a TV Rádio Clube, Canal 6 de Recife, cujas transmissões chegavam a Maceió em péssimas condições, mesmo após serem impulsionadas por uma antena instalada na Serra da Mariquita em Joaquim Gomes.

E assim, entre chiados e telas “rolando’ em preto e branco, o programa chegava até a meninada, que se pendurava nas janelas dos “televizinhos” e vibravam com os golpes mais esquisitos já criados para uma luta.

Telecatch Guarina

Foi assim que, inspirada nos “tackles” do Ted Boy Marino e nas “medições de força” do Verdugo, a meninada da Ponta Grossa acompanhou o Quia no uso da areia recém-colocada sobre o lamaçal da Rua da Assembleia.

De uma hora para outra daquele sábado, 3 de dezembro de 1966, surgiu menino de tudo quanto era lugar para participar do Telecatch Montilla Sobre Areia.

Para ser correto, o nome do evento foi rapidamente alterado por “seu” Pedro, um velho morador da Rua Guaicurus que andava com um papagaio no ombro. Passou a ser o Telecatch Guarina, em homenagem a um refrigerante popular fabricado no bairro por uma pequena indústria montada por Barros Galvão.

Antes de começar o torneio de lutas, gastou-se mais meia hora para que cada um dos contendores escolhesse o lutador que representaria.

Assim, além das estrelas lideradas por Ted Boy Marino, se inscreveram Abdala, Carrasco Árabe, Bala de Prata, Falcão, Caveira, Barba Roxa, Beduíno Baru, Demônio Cubano, El Caveira, Fantomas, Hércules e Mister Argentina.

Outro problema foi encontrar um menino que aceitasse não lutar para ser o juiz. Sobrou para o Biu, um magrinho que estava adoentado e aceitou a nobre missão. Morava no Beco da Febre, que era para ser da FEB, em referência à Força Expedicionária Brasileira.

O primeiro combate

Para falar a verdade e encurtar a história, o primeiro combate também foi o último.

Lembro que essa primeira luta envolveu o Quia — Ezequias, neto do “seu” Balé — e o Rildo, filho do “seu” João.

Recordo também que os dois resolveram dar “takles” ao mesmo tempo e que um deles não podia ter feito isto: o golpe era exclusivo do “Ted Boy da Ponta Grossa”.

O juiz tentou resolver utilizando sua autoridade máxima, mas não foi respeitado e recebeu uma chuva de golpes, dando início ao maior combate infantil da história daquele bairro.

Acredito mesmo que o juiz, que não podia lutar, foi quem mais apanhou.

Quando a briga se generalizou, os golpes espetaculares aprendidos na TV foram deixados de lado e substituídos pelos não tão glamorosos recursos utilizados nas brigas de rua, onde a ausência total de regras permite se usar equipamentos auxiliares, como pedras, paus, lama e, no caso em tela, até algumas garrafas da vizinha fábrica de vinagre do “seu” Abreu.

A batalha campal — ficaria melhor areial — se desenrolou por alguns minutos, tempo suficiente para os pais e mães chegarem e assumirem a arbitragem do combate e levarem seus gladiadores para casa, guiados pelas orelhas.

No dia seguinte pela manhã, um domingo ensolarado, esperava-se que novamente a meninada do bairro aparecesse para ocupar a “praia” improvisada.

Apareceram poucos, mas ninguém se atreveu a pisar no ringue do dia anterior. Nem podiam fazer isso. Quase todos ostentavam troféus de guerra: alguma parte do corpo engessada ou com curativo. A tipoia foi moda por vários dias na Ponta Grossa.

Os meninos ficaram conversando e o assunto mais falado era sobre a situação do juiz, o magro Biu, que havia sumido após receber os primeiros golpes e ninguém mais teve notícias dele. Foi visto pela última vez em desabalada carreira perto da Praça Moleque Namorador.

O Telecatch continuou fazendo sucesso na TV até os anos 70, mas na Ponta Grossa a audiência nunca mais foi a mesma. Culpa do estresse pós-traumático.

Além disso, nas primeiras chuvas de verão a lama da esquina famosa já havia ganho o combate contra a fofa e delicada areia da praia.

Edberto Ticianeli

Jornalista e Produtor Cultural. Ex-secretário Estadual de Cultura. Editor dos sites História de Alagoas e Contexto Alagoas.

5 comentários em “Telecatch Guarina

  • 8 de setembro de 2020 em 19:27
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    Texto primoroso. Nasci na Rua Guaicuruz, na casa de minha avó. Assistia ao Telecatch Montilla pelo Canal 2 de Recife, aqui via repetidora. E o bordão do programa era “Montilla, Montilla, Moooontillaaaa!”

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  • 8 de setembro de 2020 em 20:12
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    Morei toda minha infância na rua Comendador Teixeira s Bastos antiga rua da união e seguimento hoje Virgilio Guedes antiga Timbiras. Esta e a divisa do Prado/Levada/Prado/Ponta Grossa/Trapiche/Vergel. Joguei muita bola no areião que ficava na Levada próximo a praça Nossa Senhora das Graças. A fábrica da guarina e melhor guaraná do Estado do seu Galvão que conheci pessoalmente ficava na rua das Cacimbas considerada do bairro da levada paralela a rua São José. Mas também tinha outra fábrica do Seue chamada Guacurus a do índio que continua sendi fabricada até os dias de hoje. Só que saiu da rua do canal da Levada para o Tabuleiro nas imediações do Aero Clube na rua jurema. Sei disso porque convivi com a família. Não perdia o telecatch.

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  • 9 de setembro de 2020 em 08:39
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    Fiquei muito feliz em conhecer essa história que meu saudoso pai (Quia) protagonizou em sua infância, já ouvi muitas que ele mesmo contava, mas essa que me tirou tantos risos só conheci agora, muito obrigada por compartilhar essa história!

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  • 10 de maio de 2021 em 14:54
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    Aqui é a Fernanda Lima , gostei muito do seu artigo tem
    muito conteúdo de valor parabéns nota 10 gostei muito.

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  • 13 de maio de 2021 em 22:02
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    Sou dessa época, estava presente no aterro do areiao e joguei muita bola lar, morei na rua das vitórias, na mesma rua da farmácia do seu rui, farmácia popular

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