Jovita Alves Feitosa, a heroína de brilho fugaz
Edberto Ticianeli – jornalista
A menina Antônia Alves Feitosa, apelidada de Jovita, nasceu em 8 de março de 1848 em Tauá, então um povoado nos Sertões dos Inhamuns no Ceará conhecido como Brejo Seco.
Perdeu a mãe, Maria Rodrigues de Oliveira, muito cedo — vítima do Cólera.
No início de 1865, deixou a companhia do irmão, das duas irmãs menores e do pai Simeão Bispo de Oliveira, idoso, cego vivendo de esmolas, e foi morar com um tio, o mestre de música Rogério, em Jaicós, no Piauí, distante apenas 200 quilômetros.
Sua chegada em Jaicós coincidiu com o início a Guerra do Paraguai, que provocou na região intensa batalha entre as lideranças políticas que atuavam para mobilizar efetivos para aumentar os combates e os proprietários de terras que temiam a diminuição da mão de obra.
O presidente da Província do Piauí, Franklin Américo Meneses Dória — viria a ser o Barão de Loreto —, encarregado de fornecer os efetivos para o conflito, era um dos que mais atuava na convocação de soldados, recebendo da imprensa liberal importante contribuição, incentivando a necessidade de unir forças com elevado entusiasmo patriótico para derrotar o inimigo da pátria.
Sua tarefa não era de fácil execução, principalmente porque os homens mais hábeis refugiavam-se nas matas, fugindo da convocação.
Como parte dessa campanha, a imprensa criou uma imagem depreciativa dos paraguaios e particularmente do povo guarani. O objetivo era incitar o ódio e assim colher mais voluntários.
Outro atrativo para o recrutamento foi definido pelo mesmo Decreto (nº 3.371 de 7 de janeiro de 1865) que criou os Voluntários da Pátria.
Estes recrutas recebiam o mesmo soldo dos voluntários do Exército e mais 300 rs diários.
Quando fossem desligados, com o fim da guerra, teriam direito a uma gratificação de 300$000 e um lote de terra de 22.500 braças quadradas em colônias militares ou agrícolas.
O soldado Antonio Alves Feitosa
A partir de março de 1865 foram enviados os primeiros combatentes recrutados no Piauí. Entre eles estava Jesuíno Rodrigues da Silva, irmão mais velho de Jovita.
Em 20 de junho, querendo seguir os passos do irmão e provavelmente buscando também se afastar da miséria em que vivia, Jovita Alves Feitosa resolveu acompanhar os recrutados pelo capitão Cordeiro na sua região, que caminharam até Teresina.
Dias depois, segundo o jornal piauiense Liga e Progresso de 19 de julho de 1865, “um jovem de 17 anos de idade, pouco mais ou menos, estatura regular, vestido simplesmente de camisa e calça, e trazendo na mão um chapéu de couro” apareceu no palácio da presidência da Província pedindo para ser aceito como voluntário da Pátria.
O presidente Franklin Doria, que o recebeu, aceitou o seu pedido e lhe ordenou que no dia seguinte, 9 de julho, se apresentasse para ser aquartelado.
Segundo o jornal, algumas pessoas notaram naquele inscrito sinais que indicavam ser ele uma mulher e passaram a observá-lo com cuidado.
Às quatro horas da tarde de 9 de julho, horas antes de se apresentar para o seu aquartelamento, o jovem recruta estava na Casa da Feira quando uma mulher percebeu suas orelhas perfuradas para o uso de brincos. Se aproximou e apalpou-lhe os seios contra sua vontade.
Mesmo estando apertados por faixas, foram notados pela curiosa, que concluiu ser o soldado do sexo feminino. Imediatamente avisou ao inspetor de quarteirão, que a prendeu e mandou ser levada por seus agentes até o Chefe de Polícia.
Liga e Progresso publicou que imediatamente formou-se uma “multidão imensa” que acompanhou a detida até a casa do Chefe de Polícia José Manoel de Freitas, onde foi interrogada.
Ao responder as perguntas informou chamar-se Antônia Alves Feitosa, mas que era conhecida desde menina pelo apelido de Jovita. Tinha 17 anos de idade e era solteira, vivendo de suas costuras. Mal sabia ler e escrever.
Explicou que resolveu usar roupas de homem porque quando falava que tinha a intenção de alistar-se para a Guerra do Paraguai, diziam-lhe que, como mulher, não poderia ser aceita no Exército.
Como era grande o seu desejo de seguir para a guerra, cortou seus cabelos com uma faca e pediu a uma mulher que os aparasse bem rentes. Em seguida vestiu roupas masculinas e foi apresentar-se ao Presidente da Província, rogando-lhe que a mandasse alistar como voluntário da pátria.
Esclareceu que chorou ao ser detida porque se sentiu envergonhada por estar em trajes de homem na presença de muitas pessoas. Chorava também porque imaginava que não seria mais aceita para a guerra.
Perguntada se sabia atirar e se estava preparada para sofrer nos campos de batalha, respondeu que não sabia carregar as armas, mas que sabia atirar. Asseverou que tinha disposição para aprender o que fosse preciso e que suportaria suportar os trabalhos na guerra. Se dizia pronta “até para matar o inimigo”.
Sabendo que ela não seria aceita, o Chefe de Polícia a sondou sobre a possibilidade de Jovita seguir para o sul “a fim de ocupar-se em trabalhos próprios do seu sexo”. Ela respondeu que em último caso aceitaria, porém reafirmou que o seu desejo era “seguir como soldado e tomar parte nos combates, como voluntária da pátria”.
Logo abaixo do espaço onde publicou esse interrogatório, o jornal liberal passou a identificar no gesto de Jovita uma “excepcionalidade da regra”, considerando que no sexo feminino “naturalmente se aninham o medo e o pavor”. Para o jornalista, Jovita encarava “com verdadeiro denodo e coragem aos rigores de uma guerra!”.
E concluiu: “Do interrogatório que se acaba de ver e de diversas interpelações que particularmente se tem feito a esta brava jovem, ainda se não pode coligir que outro desígnio, a não ser o nobre fim de pugnar pela defesa da pátria, a tivesse trazido da vila de Jaicós a 70 léguas distante desta cidade. É um heroísmo a toda prova”.
Ali começava a ser trabalhada a sua imagem. Em poucos dias seria elevada a heroína como forma de estimular novos recrutamentos.
Fardada
Uma versão da história desta heroína informa que ela terminou sendo aceita como 2º sargento. Entretanto, há registros de que isso não ocorreu.
O jornal piauiense A Imprensa, de 7 de setembro de 1869, publicou longa matéria em que o dr. Franklin Américo de Menezes Dória, Barão de Loreto e então presidente da província do Piauí, se contrapõe a Antônio Coelho Rodrigues, proprietário do jornal O Piauí, órgão do Partido Conservador, que o questionou sobre os pagamentos efetivados indevidamente a Jovita Alves Feitosa.
Em sua defesa, o Barão de Loreto esclareceu que “não é exato que Jovita Alves Feitosa tivesse assentado praça no 2º corpo de voluntários do Piauhy. Da minha correspondência oficial com o ministério da guerra em 1865, o que consta expressamente é que permiti que aquela mulher seguisse com o dito corpo, com o fim principal de que seus serviços fossem aproveitados na campanha em algum hospital de sangue”.
E continuou: “Em abono da minha deliberação, citei até o procedimento dos presidentes da Bahia [caso Anna Nery] e das Alagoas, que já haviam aceitado pessoas do sexo feminino para enfermeiras dos soldados na guerra. Tolerei, é verdade, que ela usasse das insígnias de 2º sargento; o que aliás, acendendo o entusiasmo público onde quer que ela se apresentou, contribuiu para facilitar a aquisição de muitos voluntários”.
E concluiu: “E se ela percebeu vencimentos correspondentes àquele posto, é que, até o ato da sua dispensa, alguns vencimentos, talvez até superiores, lhe deviam ser pagos em atenção ao mister para que o governo provincial a contratara”.
Esse depoimento do presidente da Província revela que as autoridades tinham percebido que a divulgação do gesto da jovem seria útil para incentivar o recrutamento de novos soldados.
Outros registros indicam que a imagem dela foi trabalhada para cumprir este papel, sendo atribuída a ela declarações tão bem articuladas que soam estranhas na boca de uma jovem de 17 anos, semialfabetizada do interior do Piauí em 1865.
Ela teria dito, como publicou o Jornal de Recife de 2 de setembro de 1865, que não aceitava servir como enfermeira porque que seu maior desejo era “bater-se com os monstros que tantas ofensas tinham feito às suas irmãs de Mato Grosso e vingar as injúrias ou morrer nas mãos desses tigres sedentos”.
Dificilmente ela teria dito isso.
Heroína por 72 dias
Com o seu feito já conhecido em todo o país graças a divulgação promovida pela imprensa, Jovita e o 2º Corpo de Voluntários da Pátria deixaram Teresina a bordo do vapor Tocantins no dia 11 de agosto de 1865 com destino ao Rio de Janeiro.
Após navegar o trecho final do Rio Parnaíba, o Tocantins subiu um pouco mais a costa brasileira e aportou em São Luiz do Maranhão no dia 23 de agosto para receber mais soldados.
Jovita, que deveria ficar hospedada na residência do juiz de Direito da 2ª Vara, dr. Antônio Francisco de Salles, foi levada para a casa da família do ajudante de ordens do presidente da Província, tenente Campos, que chegou primeiro a bordo.
No dia seguinte foi homenageada com a apresentação de uma peça de teatro contando sua história. No camarote onde ficou foi estendida a bandeira brasileira. Trajava calças brancas, saiote encarnado e a fardeta e boné dos Voluntários da Pátria. O cabelo era cortado à escovinha. No braço a divisa de 2º sargento.
Foi presenteada com um trancelim de ouro que custou 200$000 e com um fardamento, que foi preparado com esmero e os custos pagos pelo negociante português Boaventura José Coimbra.
No dia 25 de agosto, o vapor partiu de São Luiz e dias depois chegou a João Pessoa, onde Jovita também foi recebida com honras e presenteada com um anel de brilhantes.
O Tocantins tocou em Recife no dia 1º de setembro de 1865. Novamente foi recebida com festa e uma peça em sua homenagem foi apresentada no Teatro Santa Isabel. Ficou hospedada no Palácio Provincial, onde lhe foi oferecido um jantar.
Sua passagem por Salvador também mobilizou muita gente para recebê-la. Foi recepcionada como heroína pelo presidente da Província, que a alojou em seu palácio.
A praça em frente à residência oficial ficou repleta de curiosos e fotógrafos.
O Jornal do Commercio de 10 de setembro de 1865 publicou uma nota datada de cinco dias antes em que um jornalista em Salvador assim analisa o papel que ela cumpria: “Rodeada sempre de mil admirações, ela será o Noli me tangere [não me toques] do nosso Exército, depois de haver seduzido com seu heroico exemplo centenas de voluntários para a salvação da pátria. Aqui deverá ela ter fortificado o patriotismo dos nossos patrícios, que, ou já se inscreveram ou pretendem fazê-lo, engrossando as fileiras já organizadas das novas expedições”.
Quando chegou ao Rio de Janeiro, no dia 1º de setembro, já era consagrada como heroína e jornais noticiavam amplamente o seu nome que inspirava poetas e cronistas. Era considerada a nossa Joana D’Arc, que também cortou o cabelo e se vestiu de homem para lutar pela França.
Ficou hospedada na casa da família de Fernando Costa Freire, inspetor da tesouraria de Fazenda.
Entretanto, também foi no Rio de Janeiro que surgiram as maiores críticas ao seu engajamento no Corpo de Voluntários da Pátria. Questionava-se o presidente da Província do Piauí por permitir o seu alistamento sabendo que isso não obedecia as regras do Exército.
Não perceberam que o dr. Franklin Américo de Menezes Dória sabia sim, mas a inscreveu simbolicamente para usá-la como propaganda e conquistar novos recrutas.
Como era esperado, no dia 10 de setembro Jovita recebeu um comunicado do governo informando que ela não poderia fazer parte dos efetivos combatente por não haver “disposição alguma nas leis e regulamentos militares que permita a mulheres a terem praça nos corpos do Exército”, dizia o documento emitido pelo Ministério da Guerra.
O que não impedia que ela seguisse com os soldados “como qualquer outra mulher“. Ela poderia “prestar os serviços compatíveis com a natureza do seu sexo” nos campos de batalha. Foi convidada a ser enfermeira, mas recusou.
Seus apoiadores e principalmente os oficiais oriundos do Piauí, ainda tentaram reverter esta decisão levando-a para uma audiência, no dia 18, com o próprio imperador D. Pedro II. Não se conseguiu nada e Jovita foi rapidamente esquecida e descartada.
Fim trágico
Após se negar a cumprir papel alternativo, Jovita resolveu voltar ao Ceará e o governo se encarregou de custear seu retorno a bordo do vapor Paranaguá.
Como aguardava receber o dinheiro arrecadado para ela em um espetáculo em teatro do Rio, ameaçou não embarcar.
O problema chegou ao presidente da Província, que intercedeu junto ao proprietário da empresa de navegação para retardar a partida e assim dar tempo a ela receber seus recursos.
Mas não foi preciso alterar a data da partida. O negociante Antônio Gomes de Campos adiantou o dinheiro e ela pôde viajar.
Quando chegou em Brejo Seco foi recebida friamente por sua família, que não a perdoava por ter abandonado o pai e os irmãos menores. Procurou seu tio em Jaicós, mas também não teve dele uma boa recepção.
Avaliando que ali não teria mais ambiente e sabendo que no Rio de Janeiro era mais provável encontrar uma forma de sobrevivência, resolveu voltar à capital do país, onde desembarcou em 18 de março de 1866.
Em 9 de outubro deixou o Rio no vapor inglês Humboldt em direção ao Rio da Prata no sul do continente. Especulava-se que teria ido para Montevidéu em companhia de um amante piauiense ou que pretendia se aproximar da zona dos combates para localizar seu irmão mais velho.
Três meses depois, em 8 de janeiro de 1867, estava de volta ao Rio de Janeiro em um vapor que tinha partido de Montevidéu.
Os jornais da época, entre eles o Correio Mercantil, publicaram que nesse período, longe da família e sem trabalho, Jovita “arremessou-se no caminho da perdição e da amargura” e se tornou “uma das elegantes do mundo equívoco”, forma velada de dizer que ela estava se prostituindo.
Logo após completar 20 anos de idade, em 1867, Jovita se apaixonou pelo engenheiro galês William Guilherme Noot, que trabalhava na companhia City Improvements, exploradora dos serviços de esgotos do município, e se afastou da prostituição. Planejava casar e ter filhos com ele.
É muito provável que o engenheiro Noot não tivesse esse mesmo intento.
No domingo, 6 de outubro de 1867, ele escreveu um bilhete para Jovita, em inglês, se despedindo e comunicando que partiria no vapor Oneida para a Inglaterra no dia 9 de outubro, por ter encerrado o seu contrato com a firma.
Jovita não dominava a língua inglesa e achando que aquele era mais um bilhete que recebia dele como tantos outros, não procurou imediatamente alguém para traduzi-lo.
Na manhã do dia 9 de outubro (quarta-feira), ela estava em casa na Rua das Mangueiras, nº 36, quando soube que o engenheiro tinha partido para a Inglaterra. O Oneida levantou ancoras às 8h da manhã com destino a Southampton.
A notícia a deixou surpresa e desassossegada, como registrou o Jornal do Commercio. Seu descontrole foi tanto que a mulher com quem dividia a casa, “temendo algum desatino da sua parte, procurou tranquilizá-la, dizendo-lhe que talvez não fosse verdade”.
Um pouco depois das duas horas da tarde, Jovita chamou um carro e “vestida com todo o esmero”, disse a sua colega “Adeus até nunca mais” e indicou ao condutor que se dirigisse à Praia do Russel nº 43, onde Noot dividia uma casa com outro engenheiro.
Na residência, confirmou com a escrava a partida do amante.
Entrou no quarto dele, pediu um envelope, colocou alguns papéis dentro e o endereçou a Noot, recomendando à serviçal que o fizesse chegar ao seu destino. Pediu para ficar só e se trancou no quarto.
Às cinco e meia da tarde, percebendo que Jovita estava no quarto há muito tempo sem produzir nenhum ruído a escrava abriu a porta e a encontrou deitada na cama com a mão direita sobre o coração.
Achando que ela tinha desmaiado, tentou reanimá-la levando um vidro de água de colônia ao seu nariz. Mas quando se esforçava levantá-la percebeu que a mão sobre o peito segurava um punhal que estava cravado em seu coração.
A autópsia foi realizada pelo dr. Goulart e no bolso da suicida foi encontrado um bilhete em que declarava: “Não culpem a minha morte a pessoa alguma. Fui eu quem me matei. A causa só Deus sabe“.
Seu corpo ia ser atirada na vala comum do Cemitério do Caju, mas alguém resolveu dar-lhe um enterro mais digno e recolheu entre amigos contribuições para usar uma cova separada.
Quem fez isso foi Francisco Mendes de Araújo, 60 anos, guarda do necrotério da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e um dos bravos e condecorados combatentes do Pirajá, onde foi ferido.
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Em 27 de março de 2017, o nome de Jovita Alves Feitosa foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, que se encontra no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília, em virtude da lei n.º 13 423 de 2017.
Esta Lei nasceu de um projeto de 2012 apresentado pela deputada potiguar Sandra Rosado (PSDB).