Memórias da pele da parede
Por Álvaro Brandão – mestre em Linguística Aplicada
Em 1989, teve início a sequência de greves na Ufal. Na época, era estudante do COS* (até hoje não entendo o porquê se denominava “curso” ao invés de “faculdade”). Desencantado, aceitei convite de amigos franceses e fui morar em Salvador, onde abrimos um restaurante, o Paris Latino, na Rua da Paciência, no Rio Vermelho.
Certa feita, estava me preparando para abrir para o almoço, quando uma negra de baixa estatura, bonita, entrou no salão muito bem vestida e, em inglês, disse que estava com fome e perguntou se eu podia ajudá-la.
Até então, eu nunca havia tido contado com um africano de verdade. Sentamos e, com o meu inglês de surfista, iniciamos um diálogo.
A partir daí, passei a ouvir um relato que me chocou profundamente (e choca até agora enquanto narro os fatos).
Ela era de Gana, ex-colônia britânica e, claro, o país enfrentava uma sangrenta guerra civil. Sem dinheiro, sem comida e com filho para criar, decidiu migrar em busca de condições melhores para oferecer a sua família.
Na ocasião, aceitou o convite de um casal de americanos do Norte para fazer a migração (o casal tinha um veleiro, fazia um tour pelo mundo e a próxima parada seria no Brasil). Em troca ela ajudaria nos serviços diários do barco.
A moça negra viu diante dela uma grande oportunidade e aceitou a proposta. Porém, segundo seu relato, ao embarcar e se afastar da costa africana, o casal transformou a moça em escrava — alimentação precária, excesso de trabalho e péssimas condições de acomodação.
Após, atravessar o Atlântico, o veleiro atracou em Salvador. O casal deu dinheiro para ela comprar mantimentos. De acordo com seu relato, se dirigiu a um super mercado, fez as compras, mas, quando voltou à marina, o barco não estava mais lá. Ela tinha sido abandonada.
Durante um tempo, poucos dias, disse, vagou pela cidade de Salvador, sem falar português, se virando para sobreviver. Até que passou em frente ao Paris Latino e resolveu entrar e pedir um prato de comida. Em troca, ela bordaria um pano para mim.
E assim, o fez. O resultado ficou lindo. Era uma peça de arte africana legítima, que representava a fauna de seu país de origem.
Como não havia redes sociais na época, mobilizei os amigos mais próximo, mostrei o resultado, resumi sua história e, como o brasileiro de verdade é muito solidário e amistoso, rapidinho ela recebeu uma grande quantidade de encomendas.
Durante muito tempo guardei seu presente (para mim, um prato de comida e um copo com água nunca deve ser dado em troca de nada). O pano bordado me lembrava o quanto o Mundo era um antro de gente malvada e desumana.
Ficava me imaginando no lugar dela (é empatia que chama isso, né) e me sentia mal.
Isso aconteceu há 40 anos e hoje eu percebo que nada mudou, pois, como dizia Nelson Rodrigues, “os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”.
* Curso de Comunicação Social