A tragédia brasileira
Por Sergio Braga Vilas Boas
Aqui rendo homenagem póstuma a Wanderley Guilherme dos Santos
Antes de qualquer coisa quero dizer que a despeito do título, estou otimista.
Estou porque não há a mínima possibilidade de chegarmos a algo pior do que isso. Qualquer piora aparente ou de fato, será apenas a continuidade de um processo que, parece, vai demorar para ser estancado.
Como espalhava o palhaço Tiririca em sua primeira campanha: pior que está não fica!
Outra coisa que me traz certa tranquilidade, é que o precipício que abraçamos, foi uma escolha majoritária do povo brasileiro com auxílio luxuoso dos poderes constituídos, das instituições, da grande imprensa, etc. Assim, caminhamos de braços abertos para um passado remoto, por nossas próprias pernas.
Elegemos um néscio, negacionista, habitante da periferia da política, personagem histriônico, dado a discursos encharcados de preconceito, expurgado do exército por seu comportamento, e que levou a vida a aplicar pequenos golpes que lhe renderam algum retorno financeiro e o ajudaram a acumular pequena fortuna.
Ele, o néscio, no governo, cercou-se de uma escória escroque, cuja competência para aplicar golpes no país é formidável.
Tudo isso sob os aplausos efusivos de uma claque cuja cegueira, ou a imbecilidade, são tamanhas, que a ciência humana levará séculos para chegar a uma conclusão sobre o que diabos aconteceu.
Por aqui, como já disse em escritos anteriores, enganamos o poço. O próprio já havia dado basta.
Ele foi até o limite da sua capacidade. Foi irresponsável, eu diria. Empedernido. E nós, para não fugirmos ao nosso atavismo golpista, demos um golpe no poço! Decerto que nosso amigo empalideceu, entalou, engasgou. E, sem um tribunal a que recorrer, restou-lhe a mudez.
O poço imaginou que Temer, o breve, – e tudo que ele carregou – teria sido a coisa mais pífia que já tinha abrigado em seu fundo: não me joguem mais coisas desse naipe!
O poço parecia tranquilo. Pensava lá com seus botões: ufa, chegou ao fim! Então lhe rimos sorrateiramente. Aquele riso sarcástico, indecifrável, de quem prepara uma rasteira.
O Cientista Político Wanderley Guilherme dos Santos – falecido em outubro de 2019 aos 84 anos –, por quem eu nutria profunda admiração, publicou, sobre o “governo” Temer, em 26/08/2016, o artigo “O Grande Salto Para Traz de Michel Temer”. Mal imaginava o Cientista, que o salto sofreria continuidade, seria um salto triplo.
O que se lê abaixo, cabe perfeitamente hoje.
Escreveu Wanderley: “O grande salto para trás de Michel Temer tem tudo para dar certo: uma burguesia econômica tíbia, profissionais liberais (engenheiros, médicos, dentistas, advogados, etc.) conservadores em sua maioria, heterogêneo apêndice do terciário de mão de obra rudimentar e reacionária (balconistas, caixas e congêneres), categorias intermediárias entre o assalariamento e a incapacidade de crescer – pequenos comerciantes, escritórios periféricos do setor de serviços – igualmente reacionárias e um operariado de baixo poder ofensivo, exceto em alguns momentos da trajetória econômica, majoritariamente caudatário de lideranças partidariamente comprometidas.
No passado, excepcionais lideranças, conduzindo um estamento político ainda pouco contaminado pelo vírus acumulativo das gerações capitalistas, empurraram um empresariado gaguejante em direção à modernidade. Contaram com auxílio de uma burocracia estatal de alta competência e valores nacionalistas, formada desde os anos 30, e que atravessou com dignidade, com exceção minoritária, o período ditatorial.
A imprensa, nos intervalos de liberdade, era ideologicamente plural e economicamente competitiva. Não havia lugar para cenas como a do dia 17 de abril de 2016, na Câmara dos Deputados, nem mesmo sob a vigilância de olhos e ouvidos fardados.
Hoje, Michel Temer dá o tempero insosso ao caldeirão reacionário em que se misturam os pelotões de sempre da retaguarda. Dos políticos vertebrados poucos restam, paralisados pelo nível de despudor explícito das negociatas entre Legislativo e Executivo, com participações especiais do Judiciário, noticiadas como rotina por uma imprensa concentrada, chantagista e vingativa.
A burocracia estatal espatifou-se em tribos predatórias e ameaçadoras: polícia federal, procuradores públicos, fiscais aduaneiros, auditores, juízes e todas as demais gangues, medindo-se semanal, mensal, anualmente, em campeonato de extorsões da renda nacional à vista do público desarmado, sem refúgio e sem nicho de apelação.
A população brasileira está sendo sistematicamente estuprada por folhas de pagamento em que os penduricalhos de benefícios laterais a título de todos os auxílios de que ela própria é desvalida, transformados no meu champanhe, minha vida dos casamentos-ostentação de políticos, juízes, empresários, banqueiros e chalaças.
O governo de Michel Temer dá as primeiras passadas, acelerando para o grande salto para trás e a grande queima de estoques. A massa assalariada brasileira está sendo vendida a preços de saldo, com as liquidações iniciais dos programas educativos e sociais. O patrimônio de recursos materiais, como antes, será oferecido como xepa. A repressão à divergência não será tímida. Não há nada a esperar.”
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Enfim, nada a esperar. E, junte-se a tudo, uma pandemia que já conta com seis milhões de contaminados, e subindo; 182 mil mortos e subindo; cujas ações de combate do néscio e seu governo são iguais a ele próprio.