O Senhor do Engenho virou tema da moda em 1938
José Lins do Rego
Publicado no Diário de Notícias (RJ) de 1º de janeiro de 1938. Título original: O Senhor do Engenho virou tema da moda.
Um meu amigo, quando há uns meses estive em Recife, mostrou-me um livro d’um americano onde se fazia a mais justa crítica aos sentimentalistas da vida agrícola nos Estados Unidos, isto é, do velho sul de antes da guerra civil. Aos sujeitos que deram para chorar, copiosamente, sobre umas boas tradições de sua terra, dando por este modo espetáculos em dramalhões de capa e espada de suas saudades.
Geralmente, as viúvas que mais gritam são as que primeiro se casam. Derramam lágrimas, como uma torrente, e depois de seis meses os olhos começam a chorar por outro que o defunto. Elas gritam porque é bonito gritar com o caixão do marido à porta.
Isso se dá também não só com as viúvas de verdade. Há viúvas desse gênero por toda parte. Viúvas nos assuntos literários, por exemplo.
Nesta história do senhor do engenho em Pernambuco, há umas viúvas bem desfrutáveis, das que incham os olhos de chorar e enrouquecem de gritar, em saídas de enterros. Está ganhando uns excessos meios ridículos o saudosismo pelo passado rural do Brasil.
O caso do entusiasmo atual pelo “senhor de engenho” antigo, em contraste com a atitude de há três ou quatro anos, é típico.
O senhor de engenho era uma obra-prima da ruindade. Quando se queria evocar ou sugerir a crueldade nos tempos da escravidão, falava-se logo, com muita injustiça, aliás, do chicote do “senhor de engenho”, do seu gosto de dar pancada, em mandar surrar gente.
Agora a coisa mudou. Chegou de fora há uns quatro anos um esquisitão para quem a história de Pernambuco era mais qualquer coisa que aquele amontoado de datas que os historiadoresinhos locais pensavam que era história, e nos disse outras afirmações, que o senhor de engenho na vida do Nordeste tivera um relevo e uma atuação muito mais humana e simpática do que se pensava. E que ao senhor do engenho, Pernambuco devia mais que a ninguém na formação do seu caráter político, no seu vigor econômico, em tudo mais. Voltara-se o tal sujeito, que logo depois desapareceu da circulação, também para o que nos engenhos do Nordeste era uma riqueza de sugestões de cor e de movimento. Para a vida pitoresca das moagens, para a vida social das casas grandes. Enfim, fizera ele para o historiador e para o artista a descoberta do engenho banguê.
Tudo isso, porém, com uma rara força de evocação ainda que no meio de muitas idiotices e pedantismo. Mostrou esquisitão que no Nordeste, a figura do senhor de engenho e do padre entraram como as dos dois maiores produtores da grandeza de Pernambuco.
Estava, portanto, reabilitado o senhor de engenho — mas sem excessos sentimentais.
Foi o bastante para que se modificasse o meio mundo que se vivia anteriormente a tratar tão mal os senhores de engenho. Já o senhor de engenho não era mais do que se dizia, seria apenas isso: Um varão de Plutarco.
Em vez do brutamontes de bota e esporas, de rebenque nas mãos, um doce patriarca da Provença, acariciando negrinhas, como os viu o dr. Humberto Carneiro, com grandes lenços de alcobaça.
Essa gente está fazendo muito mais contra os senhores de engenho que o governador Chichorro. Estão querendo matar de ridículo homens tão bons e tão fora de exibições. A coisa virou, totalmente pelo avesso. Hoje, o senhor de engenho já enjoa a gente de tanta bondade reunida. É uma figura sem relevo humano nenhum a que a literatura está pintando dele. O que estão fazendo com os interessantes capitães e coronéis de Bagaceira, é o mesmo que José de Alencar cavou para o índio: uma sublimação, um lugar para a oratório. Eu penso que muita vida de santo não teria tão cheia de renúncia e de heroísmo como a de Peri. Essa sublimação, porém, deu num ridículo desgraçado, quando se pôs em contato com a realidade.
A literatura do Brasil só tem servido para embaraçar qualquer avaliação que se tem tentado com sinceridade e com critério.
Quando se procura um juízo acertado sobre a significação do indígena, lá vem o Santo Peri de José de Alencar, ou o choro pungente de Gonçalves Dias. Indague se pelo que fez o negro e a literatura nos apresenta os versos enfáticos de Castro Alves.
O senhor de engenho está tema da moda.
Não quero dizer com isso que não tenham aparecido no meio de tantas coisas bons retratos, bem vivos e bem reais.
O velho Jerónimo de Noruega, de Luiz Cedro, e o Wanderlei do Rosário, do Júlio Belo, são dois retratos dignos de se pendurar em parede de sala de visitas de qualquer casa grande.
É que os dois escritores pernambucanos, senhores de engenho de verdade, não quiseram compor apenas para quarto de santo, mas retratos fiéis que nos obrigam a evocar a vida de dois homens de bem.